“Ele não melhora, em mim, a indecisão, a incerteza em cada ação, o sentimento de culpa. Costuma rir e caçoar de mim por qualquer coisa que eu faça. Se vou às compras no mercado, ele às vezes me segue, escondido, e me espia.
Depois debocha de mim pelo modo como fiz as compras, como sopesei as laranjas na mão, escolhendo cuidadosamente, ele diz, as piores de todo o mercado, zomba porque demorei uma hora nas compras, comprei as cebolas numa banca, em outra o aipo, em outra as frutas.” – Natalia Zingberld.Foto: Divulgação/Adobe Stock
Guardo a terrível mania de ler meus livros ao acaso, mudando de um para outro sem critérios, numa confusão de autores e temas que um velho professor de letras me daria boas palmadas de régua na palma da mão.
Mas gosto disso. Gosto da alternância e da conectividade que posso encontrar, por exemplo, com Ian McEwan e James Joyce, e dessa rápida mudança de interesse de um tema para outro, como se estivesse sempre em um caminho aberto, impelido unicamente pelo meu desejo de ler, de conhecer e de me cansar.
Foi assim que acabei voltando a ler escritora italiana Natalia Zingberd, e seu livro de crônicas e ensaios “As pequenas virtudes”, escrito entre as décadas de 30 e 50. Poderia escrever um texto unicamente sobre sua prosa delicada e observativa, mas prefiro, ao invés disso, me concentrar naquilo que acredito ser um dos textos mais lindos que já vi sobre a verdade do amor.
“Ele e eu”, crônica que está presente no livro de Natalia, é escrito destacando as diferenças dela e de seu companheiro, como cada um age e se comporta, como cada um caçoa do outro, como divergem entre si sobre as coisas mais insignificantes da vida em comum, e como isso poderia ser o fim da existência conjugal.
Dessa forma, o texto, numa leitura mais superficial, soa como a descrição do que hoje diríamos ser um relacionamento tóxico, ou como as diferenças de comportamento e educação seriam insustentáveis numa relação, e de como é importante, além de um respeito mútuo pela individualidade do outro, impedir quaisquer divergências de ideias e opiniões entre um casal.
Mas o fato é que, ao nos aprofundarmos na leitura, procurando ir até a essência do texto, rapidamente deixamos de lado esse tom de rivalidade entre o casal e percebemos o que Natalia desde o início queria dizer: reina sobre eles o amor.
Ali, acima das divergências, das piadas de mau gosto e de uma suposta necessidade de crescimento pessoal com a pessoa amada, paira como a sombra de uma ceda invisível o desejo de amar, de cuidar e de ser cuidado.
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Ultrapassando as discórdias, as brigas e a personalidade que de cada um reversa para si próprio, num mistério que jamais teríamos o oráculo capaz de desvendá-lo, e nem mesmo de alterá-lo, repousa um amor quase que desinteressado, que ama inclusive todas as diferenças, por alguma razão que só quem ama entende.
É por isso que dizem que o amor é míope: do primeiro ao último olhar, só sê vê o que ama – ou seja, tudo.
Assim, e cada vez mais, tenho a sensação de errar em cada coisa que faço. Mas, se alguma vez descubro que foi ele quem errou, repito isso até a exasperação. Porque às vezes sou chatíssima.
Acho que ele gosta que eu dependa dele, em tantos aspectos”.