A lista que nunca muda

Aqueles que creem no amor verdadeiro jamais suspeitam de sua imitabilidade fulminante. Nos tormentos deliciosos da paixão, o amante se sub-roga no direito de anunciar a espontaneidade de seus sentimentos e a singularidade de seu amor.

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Foto: Divulgação/Adobe Stock

Em nenhum momento passa pela sua cabeça a ideia de que esta experiência tão íntima e pessoal a que chama de amor, é muitas vezes causada por uma emulação de modelos universais e consolidados, e que a explicação de seus suspiros, saudades e gritos de alegria são, na verdade, um desejo de vivenciá-las como os modelos vivenciaram-nas.

Sem um pingo de suspeita, o amante imita os comportamentos que lhe foram dados com inocência, e a euforia que lhe causa a consciência de amar e, principalmente, os obstáculos que presume existirem contra seu amor, na realidade, e acima de tudo, são o que compõem a base de sua experiência.

Na peça de Shakespeare, “Sonho de uma noite de verão”, Hérmia equipara apaixonadamente as delícias do amor com o inferno, como se a nota principal de sua paixão fosse os sofrimentos que ele lhe causa. A singularidades destes versos retratam algo mais fundo que à primeira vista parece, e que abarcam perfeitamente um lado obscuro do sentimento, muito mais ilusório do que real: a repreensão.

É uma lista que nunca muda: diferenças de idades, posições sociais, distância, coerção externa. Historicamente, os amantes são fascinados por esses impedimentos ao pleno desabrochar de seus amores, e vivenciá-las pode ser muitas vezes o ápice do ardoroso caminhar da paixão.

A ilusão de que “em tempo algum teve curso tranquilo o verdadeiro amor”, e que há forças opressoras contra pobres amantes continuamente perseguidos, é um mito muito mais vivo do nunca; e sua existência efervesce o sentimento amoroso. É por isso que sempre vemos na literatura os personagens escolherem o caminho com o maior potencial de conflito e frustação.

Em “Olhai os lírios do campo”, de Érico Veríssimo, Eugênio Fontes é um homem que experenciou por anos a humilhação da pobreza e da fome. Recém-formado em medicina, vê um caminho aberto para ascensão social e a possibilidade de riqueza que sempre se imaginou digno. O flerte com Eunice, uma fidalga filha de um grande empresário, é suficiente para que ele abandone seu amor de infância, a simples Olívia, e se apaixone pelo prestígio de sua nova namorada. O percurso de Eugênio é o de diversas desmitificações de seu desejo de reconhecimento e a percepção de sua própria autossabotagem.

Em “A possibilidade de uma ilha”, de Michel Houellebecq, Daniel é um homem que abraçou o cinismo cada vez mais presente nas relações amorosas, mas que acaba conhecendo Ester, uma mulher 20 anos mais nova. Desde o início, a voz que lhe dizia ser impossível a manutenção de um relacionamento com diferenças de idades tão extravagantes, lhe impõe ao mesmo tempo um sofrimento que agrava a força de sua paixão, até o momento final em que não vê outra solução a não ser, como Hérmia, viver deliberadamente em um inferno de seu próprio amor.

Por fim, em “A ladeira da memória”, José Geraldo Vieira nos conta a história de Jorge e Renata, uma mulher extremamente interessante e que se vê em um casamento preenchido unicamente por futilidades e descontentamentos. Jorge é a única porta para uma vida mais ampla, a uma vida elevada às grandes ideias e aos grandes sentimentos. Mas durante boa parte do livro, talvez pelo espanto de um amor tão pleno que lhe aparece quando mais desejava, Renata adoece e é incapaz de se divorciar, até sua morte trágica ao final do livro.

Mas nada disso importa. E talvez eu tenha feito pequenas resenhas de histórias cheias de erros e confusões, porque ultimamente é o que se entende por amor. E não consigo deixar de imaginar que tantos obstáculos externos, tantos arroubos violentos e descontrolados, quase sempre são, no final das contas, o marco para que desejo nasça, e o marco para que o amor morra.

Se é assim, eu escolho a tranquilidade de um leve e silencioso gostar. Isso é o que me parece ser o verdadeiro amor.

Sobre o autor

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Com 23 anos, Guilherme (@thauma_filo_literario) é advogado especializado em direito trabalhista, graduando em filosofia e obcecado por literatura. Desde a primeira vez que se pôs a escrever, percebeu que só ali encontraria o antídoto contra um mundo cada vez mais confuso e desconcertante.

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