O cristianismo cresce na medida em que desaparece do mundo

Não precisamos de nenhum censo estatístico ou de pesquisas do IBGE para constatar o declínio das religiões: é um fenômeno visível em praticamente qualquer lugar do ocidente.

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Foto: Divulgação/Freepik

Mas hoje quero ao mostrar o leitor que o inverso também é verdadeiro, e talvez nunca tenha sido tão verdadeiro como em nosso tempo: a religião, e com isso quero dizer a religião de um Deus que foi crucificado e ressuscitou dos mortos, vive mais do que nunca.

Quase tudo hoje pode ser explicado a partir de paradoxos, desde o crescimento exponencial do uso da tecnologia em escolas ao declínio no índice de casamentos, por exemplo.

De um lado, a tecnologia facilita o acesso a obras e textos que só estão disponíveis digitalmente; de outro, prejudica a interação da criança com colegas e professores.

De um lado, pessoas se casando menos significa que muitos não querem assumir compromissos que perdurem por um tempo indefinível, optando por relacionamentos descartáveis e mais descomprometidos; de outro, significa que em nenhuma outra época se casou tanto – e quem sabe apenas – por amor.

Deixo ao leitor seguir a lista por conta própria, de acordo com a sua preferência: qualquer fenômeno moderno pode ser explicado a partir de um paradoxo.

Mas há um princípio que condiciona todos estes paradoxos do mundo moderno — ou melhor, que está acima deles. É uma perspectiva, uma visão de mundo que começou a surgir há dois mil anos e que, em nossa época, produz mais frutos do que nunca: a perspectiva da vítima.

Nós somos mais preocupados com as vítimas do que nunca. Em nenhuma outra sociedade o cuidado com as vítimas se transformou em um princípio absoluto. Gostamos de bradar a morte dos ideais do ocidente, lamentar a iminência de um apocalipse, a degradação da cultura e assim por diante.

Mas não podemos negar que, no centro dessa sociedade relativista, em que a verdade não pode ser objetiva (ou nem mesmo conhecida) há um princípio absoluto: o reconhecimento das vítimas e o consequente desmascaramento de violências.   

Nos mitos ou na literatura pré-cristã, o herói destrói cidades e mata um bocado de gente sem que a narrativa demonstre a menor reprovação. A “cólera” de Aquiles começa por ele ser impedido de possuir uma escrava. Ulisses é celebrado após devastar povos inteiros. Apolônio dissolve crises incitando apedrejamentos.

Hoje, não teríamos como reescrever essas histórias em que o herói se identifica com a violência. O herói de hoje está na vítima inocente, ou percebida como inocente.

E o que quero dizer com tudo isto? Que há dois mil anos uma nova narrativa e um novo modo de ver as coisas se abria para a humanidade – afinal, Cristo foi a vítima inocente, e a Sua história foi contada a partir desta perspectiva.

O progressivo desmascaramento de violências e o reconhecimento de vítimas é uma marca do nosso mundo. Nós podemos abraçar a relatividade em tudo, menos de que a vítima, onde quer que esteja, não merece ser levada A sério ou ser posta no centro — e não é difícil encontrar a origem desta ética:

Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vos desde a fundação do mundo. Pois eu tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, preso e viestes ver-me. Então os justos lhe responderão: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos forasteiro e te recolhemos ou nu e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos te ver?” Ao que lhes respondera o rei: “Em verdade, em verdade vos digo, cada vez que o fizestes a um desses irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.”

(Mt 25,34-40)

É claro que nossos historiadores e antropólogos não dirão que o cuidado com as vítimas e a denunciação das violências se deu por uma influência cristã no mundo. Antes, são efeitos do humanismo e do secularismo. Mas estas ideias só poderiam florescer numa sociedade cristã.

O mundo pode rejeitar os ritos e a eucaristia, pode até rejeitar a crença em um Deus vivo, mas não pode rejeitar os seus efeitos: a perspectiva da vítima é a prova. 

Mas se a visão da vítima cresce, se identificamos cada vez mais novas formas de violência, como explicar o afastamento do cristianismo no mundo?

Novamente, um paradoxo. E isso porque, dois mil anos após o relato da paixão, nos encontramos num impasse trágico, na iminência de tomarmos dois caminhos excludentes.

Hoje em dia, o reconhecimento de uma vítima é acompanhado pelo reconhecimento de um agressor. A atitude que teremos com este agressor pode redundar em uma nova violência, agora contra o agressor.

Neste caso, a violência seria legítima, mas não deixaria de ser violência. E o clico interminável que Hamlet denunciou (você me dá um tapa, eu te dou dois, eu mato o rei, para depois alguém me matar), e também Caim (“o primeiro que me encontrar me matará” – Genesis 4, 14), continuaria a existir.

Ainda não estamos prontos a oferecer a outra face. Queremos reconhecer as vítimas que estão soterradas em violências subterrâneas, mas também queremos que esta vítima volte para se vingar, para expulsar o agressor e “fazer justiça”, assim como os gregos fizeram com os troianos.

Este é o reino do Anticristo. Afinal, se Cristo é a vítima que diz: “Pai, perdoa-os”, o Anticristo é a vítima que volta para se vingar. E se hoje todos que se percebem vítimas assumem o direito de praticar alguma violência, mesmo que legítima, continuaremos a optar pelo sacrifício, e não pela misericórdia.

Mas o cristianismo quer justamente o inverso. Se nos Evangelhos vemos quatro relatos que consistem em dar razão à vítima que não se vinga da comunidade, então não podemos mais culpar um terceiro sem corrompermos este relato.

Sendo ou não sendo cristão, o cristianismo legou ao mundo a necessidade de tomar uma escolha terrível: ou aceitamos a violência que reside internamente em cada um de nós e tentamos melhorar, renunciando ao direito de vingança, ou damos razão ao nosso ressentimento e vamos nos matar uns aos outros.

Não podemos mais despejar nossa violência no outro e nem em nós mesmos. O sagrado que unia uma comunidade pelo sacrifício de uma vítima, seja ela inocente ou não, acabou. Não há mais magia. O mundo se desencantou. A vinda de Deus na manjedoura foi o início desta mudança. O triunfo da cruz a sua revelação.

Mas tudo depende de nós.

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