Eu nunca fui um grande entusiasta da música brasileira, e digo isso com certa vergonha. O ideal patriótico, se é que ele existe, deveria me impelir a prestar atenção na nossa cultura, na diversidade de ramos musicais, literários e tudo mais. Mas eu nunca conheci um patriota, e suspeito que eles nem mesmo existem. Então, acabo por me contentar com essa melancólica sensação de estar dentro da normalidade: ninguém conhece a música brasileira.
O brasileiro em geral é mais influenciado pelos magníficos americanos e os refinados europeus do que por qualquer outra coisa, e isso é muito visível nas novas gerações. Qualquer manifestação artística, hoje em dia, tem uma forte carga americana, chega a ser impressionante. É como se fôssemos uma versão econômica do “american way of life”, e o limite de nossas imaginações dificilmente ultrapassa a inteligência média de um seriado da Netflix.
Mas é preciso aplaudir os americanos: eles perceberam que, mais importante do que o pão, é o entretenimento. Karl Marx levou muito a sério a humanidade, e esse foi seu erro. Lá no fundo, ninguém quer ser igual a ninguém, e um inteligentinho já deve ter escrito um tratado sobre a inclinação natural do ser humano à rivalidade e a diferenciação.
É claro que há problemas em direcionar tudo para o espetáculo e ao consumo em massa, como fazem os americanos e, por óbvio, nós mesmos. Um deles é que a cultura, de uma forma ou de outra, se degrada. Vira um produto. E um produto precisa ser digerível, simples, estocado em enormes prateleiras de supermercado – o que é o mesmo que dizer: perder qualidade para ganhar em quantidade – sim, igualzinho a um fast-food.
Qualquer um com inteligência suficiente para somar dois mais dois, por exemplo, já percebeu essa degradação suave e constante da cultura. Ou pelo menos ouviu os lamentos nostálgicos das gerações passadas sobre o que era música de verdade, etc. De certa forma, eles têm razão, a cada ano me espanto com a simplificação dos ritmos, a ausência total de melodia, o ruído asqueroso que o funk misturado com o eletrônico se transforma.
É por isso que talvez a única verdadeira contribuição de toda a “Escola de Frankfurt” possa ser resumida na trágica percepção de Theodor Adorno de que a cultura estava condenada e seria cada vez mais simplificada, até se tornar uma coisa inidentificável e que estaria completamente distante do que até aquele momento se entendia por música, cinema, teatro etc.
Mas estou divagando. O que quero dizer a respeito da música, não é tanto em relação à piora de seu ritmo e estilo, mas sim sobre o seu conteúdo. Me parece que alguns gêneros da música brasileira passaram por uma transformação que espelha uma transformação mais ampla nos brasileiros, e até mesmo no restante do mundo: a passagem de uma postura masoquista para uma sádica.
Por exemplo, na década de 60 e 70, o bossa nova era um verdadeiro choramingão. Chorava constantemente a perda da diva de cabelos longos, adorava se humilhar a Deus e ao mundo, e afirmava a certeza de que, em todos os bares da cidade maravilhosa, só pensava naquela que o abandonou como se abandona uma cueca desbotada:
Hoje eu saio na noite vazia
Numa boemia
Sem razão de ser
Da rotina dos bares
Que apesar dos pesares
Me trazem você
Onde Anda Você, de Toquinho e Vinícius de Moraes.
Resumindo: eram todos apaixonados pelo prazer de se humilhar ao tal do amor verdadeiro. Uma visão tipicamente romântica e infelizmente apropriada pelas religiões de que “se não dói não vale”. Enfim, algo completamente diferente das letras da geração Anita e Luiza Sonsa:
Eu posso conquistar tudo que eu quero
Mas foi tão fácil pra te controlar
Com jeito de menina brincalhona
A fórmula perfeita pra poder te comandar
Meiga e Abusada, de Anitta.
A diferença é tão nítida que ofusca. Não há absolutamente nada de choramingo e lamentações, e nem mesmo de prazer. É apenas uma questão de dominação, de poder, de demonstrar indiferença máxima ao outro e controle total da situação. Não estamos mais no terreno do sexo ou do amor, que necessariamente são formas de entregas, mas do orgulho e apenas do orgulho.
A mudança que me referi acima é justamente isso: eu sofri, me desprezaram, fui pisoteado e meu coração estilhaçado. Pois agora chega, ninguém mais pisará em mim, não abaixarei a cabeça, não suspenderei o jogo, não demonstrarei fraqueza. Do masoquismo ao sadismo. Da humilhação ao humilhar. Da entrega ao orgulho.
A maturidade tem algo nesse sentido também: enquanto crianças, a bondade nos é dada abertamente e o futuro é um mar branco em que tudo parece possível. A entrada no mundo adulto, por outro lado, é uma lenta e dolorosa desmitificação desse universo, e a reação que logo assimilamos é cínica e realista.
Rapidamente começamos a nos envolver apenas em relações que não há riscos para nosso orgulho e, por consequência, que não há amor, sem jamais suspeitarmos que a maturidade, em seu último estágio, é outra coisa que nada tem a ver com um instinto de guerra ou dominação, e que se pudesse ser definida em uma palavra, seria a seguinte: misericórdia.
A vida está cheia de oportunidades perdidas, desde a beleza do desabrochar de uma flor ao simples e zeloso amor de uma mulher. E só a misericórdia salva.
Sobre o autor
Com 23 anos, Guilherme (@thauma_filo_literario) é advogado especializado em direito trabalhista, graduando em filosofia e obcecado por literatura. Desde a primeira vez que se pôs a escrever, percebeu que só ali encontraria o antídoto contra um mundo cada vez mais confuso e desconcertante.