Desmistificações

É comum, antes de escrevermos um texto, termos uma ideia razoável das referências e inspirações que determinarão os caminhos da obra – como se os sentimentos investigados, a estruturação e a escolha dos termos e das frases fossem moldadas, primeiramente, por outros textos já lidos e relidos.

Foto: Divulgação/Adobe Stock

Isso é verdade até mesmo para os casos em que o escritor não consegue perceber seus modelos durante a criação do texto. Imagina o pobre escritor que seu arsenal de ideias é original, único e germinado nas profundezas de seu ser – também único e original.

A realidade, contudo, é que não somos únicos e originais. Os modos, os pensamentos e os olhares dos outros estão diretamente relacionados ao que somos, fazemos e vivenciamos. Nossos modelos estão escondidos, dificilmente conseguimos percebê-los claramente. 

Do mesmo modo, os fundamentos para o que queremos também permanecem por muito tempo na escuridão, e isso porque, se os trouxermos para a luz, pode ser que nada de excepcional seja visto: apenas desejos que são alimentados de fora, pela imagem que representam a nós e aos outros.

A consciência do que está por “detrás” dessas motivações, quase sempre, é uma tarefa difícil – para o orgulho, vale dizer. No livro “A imortalidade”, Milan Kundera talvez tenha chegado ao limite dessa investigação: o que muitas vezes nos distingue, o que muitas vezes julgamos ser nós mesmos, é uma ilusão igual à da personagem Betina que, no livro, não ama o Goethe pelo que ele é, mas o ama por seu prestígio social e pela sua própria imagem sedutora de menina apaixonada pelo velho poeta.

É duro assumir tamanha mesquinharia, ainda mais quando se trata de amor. Contudo, são justamente essas ilusões o que Proust chama de “imagens secundárias”: condições essenciais e obscuras para o que queremos e desejamos. Como se o que fazem as pessoas defenderem causas, se alistarem no exército e traírem seus parceiros é a imagem que fazem de si mesmos como revolucionários, soldados e amantes.

E a percepção dessas verdades – que muitas vezes não passam de fragilidades do orgulho -, está perfeitamente ilustrada no filme de Paolo Sorrentino, “La Grande Bellezza”.

O personagem Romano, após diversas tentativas de alavancar seus status e reconhecimento social perante a alta sociedade romana, principalmente por meio de modos e comportamentos que julgava parecer exatamente o que a dita sociedade queria, recita um poema que, finalmente, é apreciado pelo público, mas com uma diferença: é um poema seu, em que narra exatamente o que sente, e não o que deveria sentir.

O que se sucede após isso é que ele desiste de Roma e parte para sua cidade natal. Quando perguntado o porquê de desistir agora que recebeu os calorosos aplausos do auditório, ele diz que está apenas… decepcionado. 

Romano teve uma “desmistificação”, isto é: descobriu que o reconhecimento de seus ídolos é menos do que pensava, que o desejo de ser aplaudido não valia a ilusão que se acentuava.

Ele desistiu e fez bem: recuperou a si mesmo.

E é disso que a literatura, assim como a vida, sempre trata: pequenas ou grandiosas “desmistificações”.

Sobre o autor

Com 23 anos, Guilherme (@thauma_filo_literario) é advogado especializado em direito trabalhista, graduando em filosofia e obcecado por literatura. Desde a primeira vez que se pôs a escrever, percebeu que só ali encontraria o antídoto contra um mundo cada vez mais confuso e desconcertante.

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