Hoje em dia, começo a ter alguma consciência de mim mesmo. Já sei, por exemplo, que não posso ser considerado um “freie geist” de Nietzche — o “espírito livre” que pensa, vive e deseja acima de seu tempo, no seu próprio tempo.
Sei que não sou uma exceção, e muito menos um aventureiro: gosto de ordem, de rotinas e de uma rota simples e conhecida, atravessada por elementos comuns e compartilhados por todos. Algo como uma vida sem exageros, sem surpresas, tranquila e dentro da normalidade.
Ainda assim, confesso que de vez em quando me vejo atraído por uma noção de aventura e liberdade impossíveis, em que a maior parte das satisfações da vida seriam conquistadas. Um lugar sem limites, um lugar em que a vida real – o trabalho, as preocupações, as responsabilidades, o entretenimento, os amigos – seria uma mera distração, um alívio superficial.
É então que me vejo inclinado a perder longas horas em lugares lindos, demorando-me à toa sob o sol, transpondo paraísos desconhecidos, experimentado formas e ideais de vida diferentes, rejeitando as preocupações costumeiras e correndo o risco de me ver à margem de uma rota nova, ansiosamente insegura, mas livre. Puramente livre.
Essa estranha vontade que nasce e extingue em frações de segundos, foi o que me fez ler o novo livro de Ian McEwan, “Lições”, que não estava na minha lista e não tinha vontade de comprá-lo. Conhecia o escritor apenas por sua obra-prima “Reparação”, e considerava suficiente o que tinha lido dele.
Mas alguma coisa me chamou a atenção de “Lições” e, terminada a leitura, entendo o que era.
No livro, o escritor britânico resolveu criar um romance de um personagem, Roland Baines, aparentemente simples e banal, com uma vida que vai desde o século XX com os Mísseis de Cuba e a queda do Muro de Berlim, até o século XXI e a pandemia de covid-19, narrando essencialmente o cotidiano e a rotina de Roland em meio aos acontecimentos do mundo externo, misturados com seus traumas, arrependimentos e paixões.
O livro é uma espécie de epopeia do homem comum à lá “Ulysses”, de James Joyce, mas com alguns problemas mais particulares e excêntricos, como o abandono de sua esposa, a paternidade solitária e, principalmente, as várias e confusas potencialidades frustradas de Roland.
Ao longo da história, percebemos que Roland poderia ter sido um grande pianista, mas se limitou a tocar em restaurantes e bares asquerosos de Londres. Poderia ter sido um grande poeta, mas alcançou apenas a autoria de versos para cartões de aniversário. Poderia ter sido um excelente e famoso jogador de tênis, mas não passou das aulas particulares em clubes privados e mesquinhos.
O destino fez de Roland um homem de melancólica resignação, à mercê dos acontecimentos externos que moldaram, às vezes silenciosamente, o rumo de sua vida e a formação de sua personalidade. Roland viu a si mesmo, no final de sua vida, como um rio que se deixava levar, afastando-se de cada margem do tempo e de cada nado contra a maré, de cada braçada contra as forças do destino.
A narrativa é cortada por rios em todos os capítulos justamente para demonstrar isto: a evaporação e destruição do tempo dos desejos, amores e ambições, e até do próprio Roland. O resultado final é um fracasso de si mesmo, evidenciado por uma discreta e constante frustração, não tanto pela mediocridade financeira em que vive, ou pelo divorcio desastroso que foi submetido, mas simplesmente pela ausência de uma vida com significado.
Tudo isso, é claro, tem a ver com o conceito de liberdade que Roland aderiu. Para ele, ser alguma coisa era justamente o contrário da liberdade. Definir-se como alguém, amarrar-se a um amor, optar por uma carreira ou viver por uma causa era, no seu entendimento, uma limitação, uma exclusão dessa liberdade múltipla e plural.
(…) Evitava ter empregos com salário fixo para estar sempre disponível. Precisava estar à solta, não ser alguma coisa em definitivo. Um sonho sem esperança o levava de um relacionamento a outro. Se uma vez tinha sido verdadeiro, poderia, deveria, ser de novo. (…) O tormento de Roland consistia em saber como era excêntrico, ou talvez tão grandiosamente louco quanto Robert Lowell, cuja poesia o obcecava. (Pag. 205)
Não demorou muito para Roland perceber que o efeito dessa busca por uma liberdade sem limites o levaria a inúmeros desapontamentos, a insuficiência de qualquer coisa que fizesse ou ganhasse, a consciência de que estava perdido em um mundo tão perdido quanto.
Mas eu não gostaria de terminar esse texto com um apontar de dedos ou lições de moral sobre a vida de Roland, porque de todos os sentimentos, talvez o mais falso seja justamente a indignação moral e a acusação alheia.
Ao contrário: eu compreendo Roland, e talvez o leitor mais velho tenha se esquecido do que é estar em marcha para um destino desconhecido, carregando em si mil e uma dúvidas sobre o passado, presente e futuro — ou talvez se lembre através dessa leva desilusão que carrega no peito, e que tem como causa a falência de jovens sonhos que foram deixados para trás, porque o mundo se impôs na frente.
No fim das contas, é assim mesmo: o destino é mais amigável com alguns, e inexorável com outros.
Como Ian McEwan afirmou em uma entrevista, o sentido da vida é a interminável busca por um significado.