A infância é uma invenção moderna, mais propriamente do século XVI. Essa é a teoria de Neil Postman, no seu livro “O desaparecimento da infância”. Nem sempre crianças foram crianças, nem sempre a ideia de protegê-las dos segredos do mundo adulto existiu, e nem sempre a pureza e a inocência foram vistas como um valor necessário para a formação da personalidade.
Isso pode espantar num primeiro momento, mas é a realidade: antes de um estado biológico provisório, a infância é um artefato social cujo objetivo é de prolongar no tempo as exigências e responsabilidades do mundo adulto. Contudo, na concepção do autor, a infância está desaparecendo: os pequeninos se divertem com os mesmos programas e entretenimentos dos mais velhos, e a informação flui livremente por todas as idades, ocasionando uma revelação precoce da vida adulta.
Mas independentemente da questão, sabemos que não se pode ser criança para sempre. Uma hora ou outra, temos que abrir os olhos para o mundo dos adultos e tomar consciência das dificuldades e podridões que o cerca. É o que consideramos natural na vida humana: responsabilidades, deveres e obrigações precisam ser assimilados na vida, e o olhar do homem deve estar preparado para a rivalidade e para a luta de um mundo que não poupa ninguém. Definitivamente ninguém.
Bom, não é o que vemos por aí. Uma complementação que Postman já apresenta em seu livro, é o surgimento do adulto-criança, aquele que não assume suas responsabilidades, se sente amedrontado com o livro mercado, não vê razões em trabalhar para se sustentar e lhe parece mais digno jogar vídeo games do que se sujeitar a um mundo duro e insensível.
As gerações passadas, quando se deparam com jovens que se recusam a “crescer”, sentem logo mil pontadas no coração, e não entendem como é possível essa falta de… amadurecimento.
A psicologia percebeu isso, e o mercado igualmente. O amadurecimento hoje é uma ideia fixa, com mil e uma ideias e cursos de como poderíamos conceituar e identificar o que seria uma pessoa madura, desde o vago e genérico termo dos influenciadores de “autoconhecimento”, a marcos bem definidos como autonomia financeira, relacionamento estável, filhos e assim por diante.
Acredito que tudo isso é balela. É fácil imaginar vários barbudos casados que, no fim das contas, são crianças, e várias blogueiras do desenvolvimento pessoal que nem sabem exatamente do que estão falando. Mas de um jeito ou de outro, a preocupação em amadurecer é uma realidade, ou melhor, uma finalidade, quando deveria ser simplesmente um caminho, um acontecimento natural.
Por isso que, se eu pudesse definir o amadurecimento, o revestiria de apenas duas notas: transparência e despedaçamento do coração. O primeiro, seria justamente a capacidade de expressar em palavras as contradições e limites que permeiam cada um de nós, a sólida consciência do que somos quando as luzes do orgulho se apagam, e a conhecimento dos impulsos que nos oprimem dia após dia.
Para isso, sem dúvidas, é necessário, antes de tudo, um amadurecimento intelectual capaz de dar os instrumentos necessários para essa transparência e posse de si mesmo. A literatura continua sendo a principal dessas ferramentas. Talvez a única.
E é agora que me sinto tentado a dizer que há uma diferença considerável em quem passa o dia assistindo séries da Netflix a quem lê Dostoievski ou Balzac, mas isso iria justamente contra a última nota que me referi: o despedaçamento do coração.
Chega um momento em que precisamos rever as escolhas tomadas, ir a fundo nas acusações que fizemos e nas nossas participações nas ações dos outros. Chega um momento em que precisamos do perdão, pois é com ele que enxergamos quais foram os passos falsos, e como podemos rever tudo a partir de outro ângulo.
Nelson Rodrigues, no livro a “Menina sem estrela”, refaz o inventário de suas memórias a partir do ponto de vista da misericórdia, renunciando às acusações (inclusive as justas) e se põe na perspectiva do outro, até chegar na mais dolorosa felicidade: a vida além do ressentimento.
Sim, acredito que o amadurecimento só chega quando alcançamos a misericórdia infinita, o que significa que, de uma forma ou outra, todos nós somos crianças, com exceção dos santos.
Só os santos são adultos.
Sobre o autor
Com 23 anos, Guilherme (@thauma_filo_literario) é advogado especializado em direito trabalhista, graduando em filosofia e obcecado por literatura. Desde a primeira vez que se pôs a escrever, percebeu que só ali encontraria o antídoto contra um mundo cada vez mais confuso e desconcertante.