“Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”, Nelson Rodrigues
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É impressionante a quantidade de artigos espalhados pela internet, independentemente do tema ou assunto, que usam esta famosa frase de Nelson Rodrigues como uma “chave de ouro” para fecharem seus textos com algumas palavrinhas memoráveis e darem um ar de importância ao que escrevem.
Afinal, é uma frase coringa. E embora tenha sido escrita por Nelson para se referir especificadamente aos idiotas da objetividade, ou ao “novo estilo do jornalismo brasileiro”, que se tornou impecável na imparcialidade nas notícias, como estamos acostumados a assistir nos jornais, a frase rapidamente começou a ser deturpada para qualquer situação e contexto.
Um exemplo aleatório dessa deturpação concerne ao modo como a internet abriu democraticamente espaço para aqueles que o autor da vez julgará serem os “idiotas”, ou seja, de opiniões opostas às suas, e que por isso mesmo podem variar confusamente de autor para autor – uma hora são os conversadores fascistas, outra hora os esquerdistas alienados, e depois os analfabetos que não sabem escrever, e assim por diante.
Dessa forma, há nestes artigos que julgam a idiotice alheia uma denúncia mais séria e que permanece muitas vezes implícita no texto: a de que a democratização que a internet proporcionou passou dos limites, e de que é necessária uma regulação de seu uso, ou pelo menos, uma ação coletiva para “calar” os tais idiotas que irão dominar o mundo, a começar pelo digital.
É uma denúncia razoável: em poucos minutos navegando na internet, nos deparamos com baboseiras implacáveis, fake news ridículas e opiniões tão inteligentes quanto uma garça consegue ser.
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Ainda assim, creio que este lado negativo do mundo digital nunca deixará de existir, e embora a internet em grande medida seja antes um meio de controle do que de liberdade, aplicar novas redundâncias de regulação a cada novo episódio de fake news ou opiniões esdrúxulas não ajudará em nada – antes, só vai aumentar o ressentimento dos grupos punidos e instigar a rivalidade daqueles que garantem o “apocalipse” na semana que vem.
E confesso: meu lado anárquico permite que eu consiga encontrar paz e conforto mesmo no meio de opiniões completamente diferentes da minha, até mesmo naquelas que me fazem duvidar da capacidade cognitiva do ser humano.
Os “idiotas”, portanto, não me assustam, e não vejo razão para combatê-los, exceto se incitarem ou provocarem à violência imediata – eis aí, ao meu ver, o único cenário possível de intervenção das polícias da internet.
Por outro lado, o que realmente me assusta na internet é o fato de ela ter aberto caminhos não apenas aos idiotas, mas aos que efetivamente não tem nada a dizer. Há uma diferença qualitativa entre estes dois.
No livro “Public Enemies: dueling writers take on each other and the word”, Michel Houellebecq, um dos principais romancistas da atualidade, diz que, apesar dos diversos pontos de divergência entre eles, Bernard-Henri Lévy possui uma qualidade: só aparece na mídia quando tem algo a dizer, seja expondo um comentário sobre um novo livro, ou uma crítica sobre determinado tema.
Hoje, a razão de se expor no mundo virtual não existe porque necessariamente há algo a ser mencionado, uma crítica a ser feita ou um trabalho a ser promovido. Antes, o que hoje vemos na internet é a irrelevância de se ter algo a dizer.
Dessa forma, se a internet ampliou a disseminação de informações e de pessoas, promovendo a comunicação entre elas, agora corre-se o risco de sermos levados para o desentendimento mútuo, e até ao solipsismo.
A enorme quantidade de conteúdos idênticos feitos por diferentes autores, desde vlogs sobre a rotina pessoal até pegadinhas com estranhos, pelo grau imitativo destes conteúdos, deve uma hora chegar a um nível de saturação gigantesco.
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Quando isso acontecer, quando o cansaço se tornar implacável em relação aos conteúdos imitativos e repetitivos, a troca para um novo formato de conteúdo não será suficiente, já que nossos receptores de “novidade” estarão completamente fatigados.
O que acontecerá quando chegarmos a este nível de saturação digital?
É a pergunta que não me canso de fazer.