Middlemarch e o exemplo de um engano universal

Quem chega ao livro III de Middlemarch, sabe que a bela e ambiciosa Rosamond não encara suas frequentes conversas com o médico Lydgate apenas como um flerte despretensioso. Ela crê ser uma mulher comprometida.

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O único problema é que ela esqueceu de avisar o noivo: Lydgate não vê as coisas da mesma maneira, afinal, para ele “(…) this play at being a little in love was agreeable, and did not interfere with graver pursuits”.,

A frequência das conversas entre os dois vai aumentando na mesma medida que a intensidade das expectativas opostas: o médico sente cada vez mais prazer no flerte, enquanto Rosamond sonha com os móveis da casa do casal e as visitas que futuramente irão receber. 

As reviravoltas que a escritora George Eliot dá ao caso, eu deixo para o leitor descobrir. Agora, quero destacar outra coisa: a diferença das percepções do mesmo fato entre Rosamond e Lydgate.

Como é possível que ambos os personagens vivenciem o mesmo acontecimento e o percebam de maneira tão diferente? Como é possível que Rosamond tenha a certeza de um casamento, enquanto Lydgate nem pense nisso?

A primeira coisa a cogitar seria um engano motivado pela má-fé de uma das partes — neste caso, do médico. Sendo homem em uma época que o casamento era motivo de sérias preocupações principalmente para as mulheres, poderíamos dizer que ele “induziu” a jovem a gostar dele, sem se responsabilizar por seus sentimentos.

É mais ou menos isso que a tia de Rosamond, ao constatar uma possível divergência de expectativas entre os dois, diz ao médico (inclusive, creio que esse comentário seja a primeira menção ao que hoje entendemos como responsabilidade afetiva): “I think it is a heavy responsability, Mr. Lydgate, to interfere with the prospects of any girl”. 

Lydgate, um pouco aborrecido, reconhece que, para os outros, pode ter induzido ao erro a jovem — mas não para a própria Rosamond. Na sua cabeça, ela não poderia ter interpretado tudo de maneira tão diferente.

Mas é justamente isso que acontece. E assim a pergunta permanece: o que causa a diferença entre as duas percepções?

Rene Girard, em “Mentira romântica e verdade romanesca”, designa com o termo quiproquó (em latim, quid pro quo, que significa “tomar uma coisa por outra”) a diferença qualitativa entre duas percepções, duas visões opostas de um mesmo fato ou objeto sem que elas tenham a menor consciência do abismo que as separa.

O exemplo mais didático e ilustrativo é de Dom Quixote. Onde este vê um elmo encantado, o barbeiro vê uma mera bacia de barbear. Onde Rosamond vê um futuro casamento, Lydgate vê um flerte despropositado.

A causa dessas diferenças de percepções, para Girard, é o desejo (seja como desejo de autoafirmação, seja como de diferenciação da maioria, que no fundo são a mesma coisa) — e todas as expectativas, frustrações e idolatrias que ele carrega.

Rosamond, antes mesmo de conhecer Lydgate, já o vê como alguém interessante e digno de prestígio pelo simples fato de ser um estrangeiro em Middlemarch, a cidade em que ocorrem os eventos do livro. Rosamond, antes de o conhecer, já havia definido que se casaria com alguém que não fosse de Middlemarch.

Todos os caprichos de seu desejo conduziram Rosamond a ver em Lydgate um modelo dotado de prestígio, um deus que se destacava dos demais pretendentes pelo status de estrangeiro, pela linhagem familiar, pela confiança depositada a ele por um dos poderosos de Middlemarch, e pelo modo austero de afetar os outros sem ser afetado.

Ao contrário, Lydgate, que orientava seu desejo a partir da visão de que um jovem ambicioso não deve perder tempo se casando tão cedo, interpretou as conversas e as intimidades com Rosamond de um modo completamente diferente, de acordo com este modelo de conduta.

Assim, surge a terrível ideia que o desejo de ambos os personagens um pelo outro e a consequente percepção que detinham sobre suas conversas, foram condicionados por elementos anteriores a primeira troca de olhares. Não teve nada de espontâneo ou autêntico: ela aguardava um cavalheiro distante de Middlemarch, e ele ansiava por ser fiel e projetar a imagem de alguém que não se compromete tão cedo.

Agora, se observamos bem, perceberemos que esta “comedy of errors” está presente em quase todas os conflitos humanos, e as mesmas subjetividades do desejo (e quase sempre ilusórias, capazes de dotar qualidades que não são reais no sujeito ou no objeto) impedem que nos coloquemos no lugar do outro, que renunciemos, mesmo que momentaneamente, ao imperialismo da nossa percepção.

Não creio que uma das funções da literatura seja pôr em evidência a complexidade das relações humanas, mas a consciência de que sempre estamos querendo projetar uma imagem e sempre agimos em função da imagem que temos de nós mesmos, pode ser muito útil, inclusive para abandonar algumas ilusões românticas.

Basta observar as pessoas. Elas sempre falam mal das outras sem nenhum pudor, mas falam de si próprias com várias justificativas respeito da própria inocência, explicando-se sem parar, se diferenciado das outras. É isso que todos nós fazemos: o mal está lá fora, o erro e a banalidade estão nos outros.

A visão de que, na maioria das vezes, estamos enredados numa teia complicadíssima de subjetividades e expectativas de nossos desejos, como Rosamond ou Lydgate, é antirromântica e, portanto, não é levada à sério.

Mas o imperialismo de nossas percepções vem desta imagem perfeita de nós mesmos. E é isso que as grandes obras da literatura nos mostram.

Apenas ao renunciar ao orgulho é que o personagem percebe o fracasso do desejo e, por consequência, de se realizar atráves de uma imagem perfeita de si mesmo. 

Ao se encontrar livre desta espécie de escravidão, o que antes era uma afronta a sua imagem suficiente para desencadear um enorme mal-entendido, se torna, nas palavras de Girard, um tempo desperdiçado cheio de idolatria, de ciúme, de inveja e de esnobismo.

E o que antes era uma completa loucura do outro, uma interpretação descabida ou um ato horroroso, se torna compreensível; o que antes era ódio, se torna futilidade.

Não parece ser outra coisa que o poeta Bruno Tolentino quis dizer em seu poema “A vida toda de costas”, senão que vivemos em função da nossa imagem-perfeita, e que o descobrimento disso, pode ser o início de uma nova vida:

Nunca entendi que o coração sofresse

como sofre por causa do ilusório,

que fizesse de si um consistório

de fantasmas inúteis, e que nesse

fundo de calabouço se metesse

tanto remorso, tanto mais inglório

quanto nunca serviu; que padecesse

porque entulhasse um fictício empório

com suas ficções e seus delírios.

O tigre mata à toa, o coração,

fabricando e alongando seus martírios,

estraçalhando-se a si mesmo em vão,

imita a fera absurda e, como os tiros

na noite, morre só, na escuridão.

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