Ruínas de um carnaval

Por Guilherme C. Carneiro

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Foto: Divulgação/Adobe Stock

Uma vez conheci uma moça interessantíssima, de cabelos negros e ondulados, cheios de cachinhos escuros que iam até a altura do ombro e depois se perdiam nas costas em ondas suaves e minúsculas. Tinha mãos bem pálidas, e ela mesmo era uma flor de delicadeza.

Se sentava na mesa à minha frente, trabalhávamos juntos. E o que me interessava era sobretudo seu jeito intenso de ler. No almoço ou no intervalo, ou até mesmo quando deveríamos estar concentrados nas planilhas e nos cálculos, flagrava a moça dos cachos lendo, lendo profundamente, como se a dimensão do espaço a sua volta não existisse, e pairasse sobre o livro sozinha, sem paredes, sem portas, sem espessuras e, no entanto, visível a mim e a qualquer um.

De vez em quando conseguia ver o que estava lendo. Os títulos sempre me pareceram grandiosos. Admirava aquelas páginas rabiscadas, grifadas e coladas como se as olhasse pelo buraco de uma fechadura, e imaginava o desejo de aprender da moça dos cachos, o fascínio que as letrinhas lhe causavam.

Um dia saímos juntos, eu, a moça dos cachos, e todos do trabalho. Queria desde o início vê-la falar, e queria com a mesma intensidade que grifava seus livros. Assim foi: de repente, sem se fixar em ninguém, se pôs a falar dos livros. Ela estrilava, e suas palavras se expandiam numa torrente tumultuosa que contrastava com a delicadeza de seus cachinhos.

Nos dizia que a época da fidelidade e das conveniências sólidas tinham acabado para sempre. E era preciso abraçar o amor livre, o amor sem o seu lado violento, imaturo, cheio de ciúmes e posses. E sem o instituto do casamento, essa baboseira. E sem a exclusividade dos amantes, esse atraso. E reiterava: a monogamia deve ser extinta.

Imaginava que nunca mais encontraria a moça dos cachos. De uma hora para outra, ela pediu demissão, e depois foi a vez de outro colega, e depois a minha. É isso mesmo: dividimos a maior parte de nossos dias com pessoas desconhecidas. O laço pode resistir por anos, porém de tão frágil, quando se rompe, perde-se num amontoado de outros fios gastos e desfarelados.

Mas eis que chegara o Carnaval. Durante a segunda-feira de cinzas, vagava sozinho pela madrugada ao lado da praia sob a luz da passarela. Eu sentia a necessidade de me desagregar dessa confusão de pernas e barulhos que vão de um lado ao outro sem parar, e parecem um mundo à parte que nos transforma numa massa colorida e violenta.

Lembro-me de que, por instantes, tudo se acalmou. As ondas batiam na areia molhada e depois retornavam a faixa escura do mar numa nota sempre igual, como se a praia dormisse serena, isenta de qualquer emoção. Subitamente, no outro lado da rua, me deparo com os cachinhos, os mesmos cachinhos escuros de antes, as mesmas curvas e delicadezas que me fascinaram por horas, por dias inteiros.

Ela estava sentada no meio fio, tinha perdido uma sapatilha, brilhava dos pés a cabeça. E chorava. Chorava muito. Quando abria os olhos, virava-se para o lado em direção a um rapaz acompanhado de uma moça loura, jovem e bonita. O casal se abraçava, beijava e rodopiava sob os ruídos do Carnaval, e só paravam para continuarem instantes depois, como se o chão em que estavam tremesse e o mundo estivesse prestes a desabar.

Não tive dúvidas: a minha amiga de cachos, enquanto chorava, condensava toda a sua vontade de amar nesse rapazinho magricelo e de barba colorida, acompanhado de outra que amava livremente, sem posses e sem ciúmes, até o desejo se entediar.

Hoje me arrependo. Deveria ter corrido a ela, segurado em seus cachinhos escuros e ter dito, ter lhe berrado o óbvio: o Carnaval mata o amor.

Sobre o autor

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Com 23 anos, Guilherme (@thauma_filo_literario) é advogado especializado em direito trabalhista, graduando em filosofia e obcecado por literatura. Desde a primeira vez que se pôs a escrever, percebeu que só ali encontraria o antídoto contra um mundo cada vez mais confuso e desconcertante.

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