Por Guilherme C. Carneiro
A primeira vez que li ‘Os irmãos Karamazov’, de Dostoievski, tinha por volta de 20 anos. Naqueles tempos de pandemia, eu o lia profundamente, e era como se planasse sobre o livro um fio branco que me livrava de todos os instantes e fazia-me sentir livre. Por horas. Por dias.
O livro me marcou. Não tanto por seus temas, que em Dostoievski são sempre grandiosos. O que me admirou foi, sobretudo, o poema narrado por Ivan a seu irmão Aliócha, o caçula incapaz de se render ao cinismo de uma Rússia devastada, incrédula a Deus e cética em relação à bondade do homem.
No momento em que Ivan narrava-o a seu irmão, me vi preso em uma nova forma de diálogo, em um novo gênero de conversa que me pareceu o mais sublime de todos: a confissão.
A intimidade é em si mesma algo raro na existência humana, quase impossível de ser alcançada. Tudo se acumula e tudo parece tão contrário ao que gostaríamos de ser, tão alheio ao composto de nossas personalidades que uma hora ou outra precisamos confessar, e é sempre um estrondo. Quando alguém se confessa, desabo a chorar. E por segundos, acredito na existência do perdão ilimitado, desde a adúltera ao assassino em série.
Na última vez que me vi sob o fenômeno da confissão, estava em casa numa sexta-feira de madrugada, com alguns amigos. Conversávamos na cozinha e bebíamos whisky. Ria-se muito. Risadas alegres, vivas, jovens. Mas até que uma nova atmosfera se instaurou. Os sorrisos de instantes desvaneceram, a mobilidade dos membros engessou e petrificamos, como se consciência de uma felicidade ampla demais trouxesse uma hesitação, um fastio.
O apartamento estava em completo silêncio, e lá fora os sons da madrugada se misturavam: o ronco das motocicletas, o balançar dos troncos, o berro dos bêbados. Um de meus amigos passou as mãos pela barba, fixou o olhar em seu copo, e disse-nos, quase cochichando: sinto falta de beijar meu pai.
Concordamos. Não só ele, mas todos nós sentíamos falta de dizer aos nossos pais que os amávamos, que eles continuavam sendo nossos heróis de infância, que à noite sonhávamos que usavam uma capa azul e salvavam o mundo, e que depois diriam a nós que éramos o orgulho deles, e os abraçaríamos e perdoaríamos, continuamente, por toda a eternidade.
A confissão estava feita: queríamos beijar o rosto dos nossos pais. E enquanto tentava relembrar a última vez que beijei meu pai, pensei que seu sorriso, quando lhe cumprimento, junto com o abraço reservado de poucos segundos, é na verdade como se ele mesmo estivesse me dizendo, me implorando: me beije, filho!
Naquele momento, tive a certeza de que eu e meu pai pensávamos a mesma coisa, e continuaríamos a pensar, por muito tempo: adiar qualquer afeto é o mais grosseiro dos erros.
Sobre o autor
Com 23 anos, Guilherme (@thauma_filo_literario) é advogado especializado em direito trabalhista, graduando em filosofia e obcecado por literatura. Desde a primeira vez que se pôs a escrever, percebeu que só ali encontraria o antídoto contra um mundo cada vez mais confuso e desconcertante.