Enquanto participava de um seminário sobre a peça “Hamlet”, de Shakespeare, o professor seminarista não ficou muito contente quando citei a interpretação de Rene Girard acerca da obra: a hesitação do herói em se vingar, o aborrecimento em levar adiante o interminável ciclo da violência.
A justificativa da desaprovação do meu caríssimo professor era de que, quando nos aprofundávamos na teoria mimética, só víamos teoria mimética. Ele alegava que o desejo mimético introduzido por Girard na literatura limitava muito o alcance dos textos, reduzindo-os puramente a conflitos triangulares de desejo e bodes expiratórios.
Mas o problema é que esta crítica do professor nem pode ser entendida como crítica. Afinal, interpretar um texto é sempre o limitar, assim como pensar é reduzir e abstrair é reduzir. Na verdade, a formulação da pergunta deveria ser: a interpretação funciona? A análise a partir do desejo mimético funciona melhor do que outras?
Creio que a teoria mimética é uma excelente interpretação para as obras de arte, além de estabelecer um critério simples para elas: existem as obras em que as confusões, erros, paixões, violências e ilusões dos personagens derivadas da imitação são negadas e postas em segundo plano, e obras em que o mimetismo é posto em primeiro plano, sem omitir o mecanismo de imitação entre os personagens.
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Para o leitor se sentir mais confortável neste labirinto, eis um exemplo dado pelo professor Pedro Sette-Câmara: o filme “Crepúsculo” quer que o espectador acredite que o amor entre Bella e Edward nasceu de uma troca de olhares e de uma atração autêntica e mútua, e não porque Edward é o garoto mais desejado e inacessível da escola, e porque Bella foi universalmente assediada, sendo a menina nova e bonita que vai subindo na escalada do status até poder se aproximar de Edward.
A mediação da popularidade de Edward e o crescente mistério que Bella representa aos demais é posto em segundo plano, como se isso nada importasse. A teoria mimética, pelo contrário, quer desmitificar a suposta autenticidade e pureza do desejo dos personagens e entendê-los como imitadores, uma vez que dependem de um “mediador” – um modelo, um ideal, etc. – para desejarem.
É claro que dei aqui um resumo (bem resumido) da teoria mimética. Suas implicações ultrapassam em muito os conflitos amorosos, chegando até na formação de sociedades primitivas, religiões arcaicas e na antropologia do cristianismo.
De qualquer forma, quando se trata de obras de arte, a afirmação de Girard de que “apenas os maiores autores da literatura e os autores de vaudeville perceberam o desejo mimético” significa a possibilidade de compararmos (exclusivamente no que se refere ao mimetismo) obras de Shakespeare, a filmes como “Relatos Selvagens”, lançado em 2014, e investigarmos de que como a imitação foi elaborada e exemplificada neles.
E isso porque a obra de Damián Szifron trata quase que exclusivamente sobre a violência – e nada é mais mimético do que a violência. Se você me der um tapa, eu te dou outro, e quem sabe até mesmo dois tapas – e assim sucessivamente, até uma provável resolução trágica do conflito.
Em um dos relatos do filme, por exemplo, este mecanismo da imitação da violência fica extremamente cristalino. Os dois únicos personagens, a partir de um desentendimento na estrada, sentem a sede de vingança a cada novo ato de vingança do outro, ou seja, eles imitam a violência do outro.
Havia a possiblidade de algum deles quebrar o ciclo, mas ambos já estavam muito instalados na mútua imitação, e o destino não poderia ser outro senão a morte, como seus esqueletos abraçados após a explosão do automóvel, indistintos e irreconhecíveis.
Mas a problemática da violência, apesar de tudo, se intensifica muito no último relato do filme, em que acompanhamos um casamento apaixonante dos noivos Romina e Ariel, mas apenas até o momento em que Romina descobre um caso extraconjugal do seu noivo com uma convidada.
Muitas obras se antecipam quanto à reação do público para brincar com ela. Ora, é de se esperar que, num contexto em que uma jovem noiva descobre a traição do noivo no próprio casamento, a reação do público seja de até mesmo justificar a vingança, não exatamente por meios físicos, mas pelo menos para que a traída saia “vitoriosa” do relacionamento, seja o traindo, seja o humilhando.
Acontece que Romina acaba levando isso a níveis desproporcionais, como é de se esperar quando se brinca com a violência. Romina transa com um desconhecido na sacada, diz para Ariel que irá acabar com a vida dele, além de empurrar a amante contra uma parede de vidro – tudo em nome da reparação de contas, e da violência justificada.
É muito interessante como ambos noivos se imitam a partir da lógica “olho por olho”, ainda mais quando creem que a violência de cada um é legitima pelo comportamento do outro.
Eles precisam negar interiormente que são iguais ao outro, mesmo agindo em função do outro e compartilhando o mesmo desejo imitativo do outro. Eles não conseguem compreender que, deste ponto em diante, são duplos miméticos, e nada de bom sairá disso aí.
Mas eis a brincadeira que o filme faz com a reação do público: eliminar cada vez mais a tradicional presença de um herói e de um vilão, uma vez que, quanto mais avançamos nas vinganças de cada um, a diferenciação entre eles vai se apagando, como se na verdade fossem iguais, não importando mais a razão de agirem assim.
O término do relato, entretanto, não é uma tragédia como as que acompanhamos nos demais relatos, mas a inesperada união dos noivos, e que deixa o público ainda mais atônito, sem entender como o amor floresceu em meio à violência mútua dos dois.
Acontece que nem os noivos entenderam – ao menos não deliberadamente. E se a verdadeira explicação nos escapa, é porque não estamos olhando através das lentes do desejo mimético: ao estender a mão para sua noiva, Ariel e Romina voltaram para si mesmos e perceberam a indiferenciação criada entre eles, a circularidade e a monotonia de suas acusações, colocando um ponto final no interminável ciclo da violência.
É necessário que sempre alguém coloque um ponto final na violência e a tome inteiramente para si, suportando-a sem revidar, sem passa-la adiante.
No dia que conseguirmos isto, será o dia em que poderemos nos chamar de cristãos.