Noutro dia, enquanto preparava-me o jantar, sem causa ou razão alguma de ser, me vi entrando confusamente por um dos lados de uma antiga memória, esquecida na confusão de outras tantas, e que parecia querer retornar, que desejava, sabe-se lá por que, reviver, como se fosse uma velha senhora a pedir licença para contar sua anedota.
E assim me vi diante de uma fazendinha, amplos espaços verdes curvados sobre as linhas tortas de um planalto, uma brisa leve e gelada que refrescava meus cabelos e uma trilha estreita, cortada por flores e plantas silvestres, que desembocava num parquinho cheio de crianças correndo de lá para cá, ora jogadas e reviradas na grama, ora brincando de esconde-esconde ou pega pega.
Mamães e papais zelosos descasavam nas sombras de velhas araucárias, que reassistiam ano após ano ao chacoalhar de suas folhas e ao calor dos raios do sol. Deparei-me com os vários brinquedos à disposição dos pequenos, seus risos logo cortados por choros que retornavam maravilhados a novos risos, o cheiro de grama cortada e a imensidão de terra, milho e trigo que se irrompia abaixo da fazendinha.
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E ali, nos limites do parquinho, contemplei a mim mesmo, pequenino, a balançar em um pneu gasto, amarrado num tronco picotado e todo machucado, olhando a paisagem de lânguidas araucárias e cálido vento, acariciada pelas luzes violáceas do crepúsculo, que anunciavam, a todas as crianças, a triste hora de ir embora.
Minhas mãozinhas seguravam firmemente nas hastes, e meu balançar era ritmamente continuado, com leves movimentos de impulsão dos quadris e das costas eretas. Ouvia-se o barulho dos demais meninos, os chamados de seus pais e os zumbidos dos pernilongos. Mas eu me balançava profundamente, e nada trazia uma mudança no ambiente. Pouco a pouco eu me tornava mais plácido e luminoso, disperso e atento as figuras imaginárias que as nuvens iam formando, uma de cada vez, para de súbito dispersarem e se avolumarem num enorme bloco de algodão, que coroava o céu.
Estacionado naquela atmosfera nebulosa, como, em certas pinturas antigas, anjos estacionam com seus braços voltados a Deus ou tocando suas harpas, eu me perdia na imensidão de luzes e cores que o espetáculo do balançar me proporcionava, e não media as distâncias ou as brincadeiras de meus colegas. Só me importava o balançar. E me balançar profundamente.
Semelhante acontecia com os gritos de minha mãe, nova e enérgica em minha memória, a me chamar para perto de si. Embora ela existisse naquele momento, não me era nitidamente vista. O lugar em que me encontrava não oferecia pontos de referência, e era como se eu estivesse fora do tempo e do espaço, atingido por uma vertigem que me desprendia do mundo e me transportava para uma claridade que, em meio ao silêncio do entardecer, tornava tudo passageiro e irreconhecível, inclusive eu mesmo.
Enquanto me balançava, o movimento de ir e vir do balanço era como um fio branco que me sustentava na eternidade: um presente constante e irresistível. Ou simplesmente toda uma infância concentrada no leve e ritmado balançar.
Por era isto que a velha memória queria me dizer, nada mais do que isto: nela, eu fui criança.
Nela, um simples balanço foi capaz de me levar para longe do pensamento frio, das análises, cálculos e ciências que dispersam, como nuvens de algodão, a magia misteriosa da natureza.