O fisiculturista que ‘cortou as pernas’ de Maradona em 1994

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A lembrança de Fernando Signorini é que o quarto de Diego Maradona parecia uma farmácia. O preparador físico pessoal do camisa 10 lhe perguntou o que eram os frascos sobre a penteadeira no hotel onde ficou a seleção argentina em Boston, durante a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos.

Foto: Reprodução

Apenas uma pessoa sabia. E não era o próprio Maradona.

“Ninguém tinha ouvido falar de Daniel Cerrini. Era um desconhecido até Diego aparecer com ele na concentração e exigir que fosse para o Mundial”, recorda-se Roberto Peidró, médico da AFA (Associação de Futebol Argentino).

O caminho estava traçado para um dos momentos mais controversos da história das Copas do Mundo: o doping de Maradona. Cerrini passaria de personagem obscuro a protagonista de episódio traumático no futebol argentino.

“Até hoje eu acho tudo aquilo estranho. Não sei se alguém recebeu dinheiro, se foi uma questão política ou se há qualquer outro lado que não sabemos. A única certeza que tenho é que Diego não se dopou de propósito”, afirma à Folha de S.Paulo, 28 anos depois do episódio, Fernando Signorini.

Maradona foi flagrado no exame antidoping com efedrina, substância que oferece estímulo energético, melhora a performance atlética e ajuda a emagrecer. O teste foi realizado após a vitória sobre a Nigéria, na segunda rodada da fase de grupos.

“Ele estava feliz da vida com o que estava jogando, e a gente sentia que a Argentina poderia estar no caminho para o título”, afirma Sergio Goycochea, goleiro reserva no torneio e testemunha do que ocorreu na concentração.

Hoje todos reconhecem que deveriam ter questionado mais vezes o craque sobre o que ingeria, aconselhado por Cerrini. Ninguém queria desafiá-lo. Maradona era mais do que capitão do time, e sua autoridade ia além da de Alfio Basile, o treinador.

Cerrini era fisiculturista, dono da academia New Age, em Belgrano, próximo ao estádio do River Plate, em Buenos Aires. O meia tinha apartamento na região.

A versão mais aceita é que eles se conheceram por intermédio de Zulemita Menen, filha do então presidente da República, Carlos Menem. No livro “El Último Maradona: cuando a Diego le Cortaran las Piernas”, os jornalistas Alejandro Wall e Andres Burgo lembram que Cerrini era amigo da mulher de Sergio Goycochea.

O ano era 1993, e Maradona estava afastado do futebol. Das tribunas do estádio Monumental de Núñez, viu a Argentina ser goleada por 5 a 0 pela Colômbia e ouviu milhares de torcedores implorarem pelo seu retorno. Ele chamou Signorini para ajudá-lo a entrar em forma.

O preparador físico o levou para a estância El Marito, em Santa Fe, no meio do nada. Uma fazenda em que a televisão sintonizava apenas um canal de TV e com água quente para dois banhos diários.

“Quando ele viu que a TV não funcionava, saiu na janela e gritou: ‘Para onde você me trouxe, seu filho da puta?’. Eu respondi de volta: ‘Para Fiorito!'”, diz Signorini, que se referia ao bairro onde cresceu o craque.

O recado claro era que Maradona teria de se reencontrar consigo mesmo. Acompanhado pelo amigo e pelo pai, “don Diego”, ele perdeu peso e se aplicou nos treinos. Longe da cocaína, teve crises de abstinência. Mas entrou em campo nas duas partidas da repescagem contra a Austrália. A Argentina se classificou.

Cerrini apareceu para auxiliá-lo com “suplementos” e programas de exercícios.

“Eu desconfiei imediatamente. Perguntei para Diego por que ele precisava da presença daquele sujeito. Respondeu-me que era um amigo e ajudaria”, recorda o preparador.

Um dos suplementos de Cerrini –que já havia se envolvido em um episódio de doping de atleta em competição de fisiculturismo em São Paulo, nos anos 1980– chamava-se Ripped Fast. Um argumento das teorias de conspiração que se formaram depois a respeito do doping é que Maradona já tomava os comprimidos havia meses, passara por testes e o resultado nunca dera positivo.

A questão foi que o produto acabou durante a preparação para o Mundial, já nos Estados Unidos. A pedido de Cerrini e por ordem de Maradona, a comissão técnica da seleção comprou mais cápsulas de um produto que seria idêntico, chamado Ripped Fuel. Mas estas tinham efedrina. Ninguém notou.

Assim que a notícia do doping estourou, os médicos da seleção invadiram o quarto de Cerrini e o colocaram contra a parede.

“O que você deu para ele? O que você deu para ele?”, gritavam, como lembra Peidró.

O fisiculturista foi logo retirado da concentração e mandado de volta para a Argentina. Ao desembarcar em Buenos Aires, encontrou o país em comoção. Sem a presença de Maradona, a seleção foi derrotada pela Bulgária em sua chave e eliminada nas oitavas de final pela Romênia.

Por iniciativa de Julio Grondona, presidente da AFA, o camisa 10 e capitão foi afastado da delegação antes mesmo de a Fifa (Federação Internacional de Futebol) tomar qualquer decisão. Diego depois seria suspenso por 15 meses. Jurou inocência e disse, em uma das suas mais memoráveis frases, que haviam lhe cortado as pernas. A decisão política de Grondona o fez ser recompensado por João Havelange, brasileiro que comandava a entidade máxima do futebol.

O argentino iniciou a ascensão na Fifa que o fez chegar à vice-presidência.

Cerrini passou a ser uma figura maldita no futebol argentino, mas Maradona jamais o culpou.

“Ele se equivocou, mas eu assumo a responsabilidade”, escreveu em sua biografia, “Yo Soy el Diego”.

Daniel Cerrini não foi encontrado para comentar o assunto.

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