Como a crise climática ameaça o Rio Nilo e o Egito, sede da COP-27

São Paulo, 07 (AE) – Para os faraós, era a vida. Atualmente, o Nilo garante a sobrevivência de milhões de africanos. Mas, com a mudança climática, combinada com a exploração humana, começou a contagem regressiva para o segundo maior rio do mundo.

Foto: Pexels/ Spencer Davis

No delta onde o Nilo se une ao mar, o egípcio Sayed Mohamed pode ver suas terras desaparecerem. Em sua origem, em Uganda, Christine Nalwadda Kalema teme perder a eletricidade que ilumina seu lar. No Sudão, Mohamed Joma está preocupado com suas plantações.

“O Nilo é o mais valioso que temos, não devemos permitir que mude”, lamenta este agricultor de 17 anos, última geração de uma família de agricultores da cidade de Alty, no Estado de Al-Jazira, no centro do Sudão.

A imagem do rio de 6.500 km de extensão, celebrado como um deus no período faraônico com suas feluccas, papiros e mitos, já não tem nada de idílico. Sua transformação está em curso. Em 50 anos, seu fluxo passou de 3.000 m³ por segundo a 2.830 m³, ou seja, quase 100 vezes menos que o Amazonas.

Com a previsão de redução das chuvas e com episódios de seca que se tornaram cada vez mais recorrentes no leste da África, o fluxo pode ser reduzido em 70%, segundo as piores previsões da Organização das Nações Unidas (ONU).

No delta, o Mediterrâneo toma a cada ano entre 35 e 75 metros de terra desde os anos 1960. Se o mar subir um metro, engolirá 34% desta região do norte do Egito, país-sede da Conferência das Partes sobre o Clima (COP-27), e 9 milhões de pessoas serão obrigadas a se deslocar. É o terceiro lugar do planeta mais vulnerável à mudança climática.

O Lago Vitória, o principal fornecedor de água para o Nilo, está ameaçado pela falta de chuva, a evaporação e as lentas mudanças na inclinação do eixo da Terra. Um dia pode até desaparecer.

Algumas previsões incentivam o apetite de muitos, e as tentativas de conter o fluxo do rio, construindo barragens que aceleram uma catástrofe anunciada.

Do mar à sua nascente, do Egito a Uganda, várias equipes da AFP buscam explicações para o declínio de um rio que cobre 10% da superfície da África e é um recurso essencial para cerca de 500 milhões de pessoas.

Submerso ou contaminado

No litoral do delta, entre 1968 e 2009 o mar engoliu 3 km de terra. Visto do céu, com imagens de satélites, os canais de Damieta e Roseta, no mar, desapareceram. Em terra, as ondas atingem violentamente as plantações, que afundam literalmente. As paredes de concreto erguidas para protegê-las já estão cobertas até a metade por areia e água.

O fluxo do Nilo enfraqueceu e já não é mais capaz de repelir o Mediterrâneo, cujo nível aumenta com as mudanças climáticas (cerca de 15 cm no século 20).

O lodo, que por milênios consolidou a terra e atuou como barreira natural, não chega mais ao mar.

Esses sedimentos de terra e de resíduos orgânicos, em geral arrastados pelas águas e depositados no leito dos rios, ficaram bloqueados no sul do Egito desde que a represa de Assuã foi construída com o objetivo de controlar as inundações nos anos 1960.

Antes, “havia um equilíbrio natural”, explica à AFP o chefe da autoridade encarregada da proteção do litoral, Ahmed Abdelqader. “A cada cheia, o Nilo depositava sedimentos de lodo, que reflutuavam nos canais de Damieta e Roseta. Mas a barragem perturbou esse equilíbrio”, detalhou.

Se as temperaturas continuarem aumentando, o Mediterrâneo avançará 100 metros acima do delta a cada ano, segundo a Agência da ONU para o Meio Ambiente (Unep, na sigla em inglês).

A 15 km da costa, a grande aldeia agrícola de Kafr Dawar – com as suas casas de tijolos vermelhos – ainda está preservada, mas apenas na superfície.

Sayed Mohammed, de 73 anos e com 14 filhos e netos sob seus cuidados, cultiva ali milho e arroz, em campos irrigados por canais de pedra localizados entre o Nilo e uma rodovia onde ressoam buzinas de carros.

Mas o sal do Mediterrâneo contaminou muitos hectares, enfraquecendo ou matando suas plantações. Os agricultores insistem que os vegetais não são da mesma qualidade.

Para compensar os efeitos da salinização do solo, é necessária mais água doce nos campos e mais água bombeada do Nilo.

Desde os anos 1980, Mohamed utilizava bombas que consumiam muito “diesel e eletricidade, que custavam muito caro”. São gastos impossíveis para a população de Kafr Dawar assumir, asfixiada pela inflação e desvalorizações.

Em alguns pontos do delta do Nilo, campos e lavouras foram abandonados. Nos últimos anos, o idoso beneficiou-se de um programa de irrigação baseado em energia solar que visa aumentar a quantidade de água doce e, sobretudo, gerar renda entre a população e evitar assim o êxodo rural.

Graças aos mais de 400 painéis financiados pelo escritório local da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ele tem a garantia de que todos os dias seu meio hectare de cultivo terá a água necessária.

Com a energia solar, “os agricultores economizam 50%”, indica à AFP Amr Al Daqaq, responsável provincial de irrigação. Além disso, vendem a eletricidade produzida em suas terras para a companhia nacional. Ainda assim, nenhum dos descendentes de Sayed Mohamed planeja seguir o caminho da agricultura.

A longo prazo, o Mediterrâneo poderá engolir 100.000 hectares de terras agrícolas no delta, localizado a menos de dez metros acima do nível do mar, segundo a Unep.

Uma verdadeira catástrofe para o norte do Egito, responsável por entre 30% e 40% da produção agrícola nacional.

Cortes frequentes

No Egito, 97% dos 104 milhões de habitantes vivem às margens do rio, ocupando menos de 8% do território. Já no Sudão, metade dos 45 milhões de habitantes vive em 15% do território do país, próximo ao Nilo, que garante 67% dos recursos hídricos do país.

Em 2050, a população desses dois países terá duplicado. Suas temperaturas estarão entre dois e três graus mais altas do que as atuais e o Nilo, por sua vez, também terá mudado.

As projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática da ONU (IPCC, na sigla em inglês) preveem que, com o aquecimento global, em 2100 a evaporação reduzirá o fluxo do rio em 70%. Já a quantidade de água disponível por habitante será 75% menor do que é hoje. E as fortes chuvas e inundações que as previsões indicam que poderão ocorrer no leste da África no futuro compensarão apenas entre 15% e 25% dessas perdas, de acordo com esses especialistas.

No entanto, nos 10 países por onde passa, o Nilo garante a sobrevivência dos cultivos e fornece energia para populações que ficam à mercê da chuva e, sobretudo, do seu fluxo. O Sudão, por exemplo, obtém mais da metade de sua eletricidade da energia hidroelétrica. Em Uganda, esse número chega a 80%.

É graças ao Nilo que, desde 2016, Christine Nalwadda Kalema, mãe solteira de 42 anos, consegue iluminar sua mercearia e sua casa, localizada em um bairro pobre da aldeia de Namiyagi, perto do Lago Vitória, no leste de Uganda.

Mas essa eletricidade, que mudou radicalmente sua vida e a de seus quatro filhos, pode não durar para sempre, diz Revocatus Twinomuhangi, coordenador do centro de mudanças climáticas da Universidade Makererere. “Se as chuvas forem escassas, o nível do Lago Vitória e, portanto, do Nilo, cairá. Isso reduzirá a produção hidrelétrica”, alerta.

Segundo o especialista, “nestes cinco ou dez anos, assistimos a secas mais próximas no tempo e mais intensas, assim como chuvas fortes, inundações e temperaturas cada vez mais elevadas”.

De acordo com um estudo realizado em 2020 por seis pesquisadores de universidades americanas e britânicas – com base em dados históricos e geológicos dos últimos 100.000 anos -, o Lago Vitória pode desaparecer em 500 anos.

Mas, para Kalema, que cultiva banana, café e mandioca em seu jardim para alimentar sua família, todos esses dados sobre mudanças climáticas parecem abstratos. O que ela confirma a cada dia é que os cortes de água são cada vez mais frequentes.

“Por causa dos apagões, meu filho mal consegue fazer a lição de casa. Ele tem que terminar tudo antes do anoitecer, ou estudar à luz de velas”, diz, envolta em sua roupa feita de tecidos estampados, muito populares entre as tribos Baganda e Basoga. “Me custa muito dinheiro, considerando que sou a única que atende às necessidades da minha família”, continua.

Capturar fluxo

A vida sem eletricidade continua sendo o dia a dia de metade dos 110 milhões de habitantes da Etiópia, apesar de ser o país que mais cresce na África. Adis Abeba conta com sua megabarragem para remediar esta situação, mesmo que tenha que lutar com seus vizinhos.

A Grande Represa do Renascimento (Gerd), cuja construção foi lançada em 2011 no Nilo Azul – que se une ao Nilo Branco no Sudão para formar o Nilo -, tem como objetivo de longo prazo instalar 13 turbinas para uma produção de 5.000 MW.

Desde agosto, seu reservatório contém 22 bilhões de m³ de água dos 74 bilhões de sua capacidade total.

Adis Abeba já possui a maior barragem hidrelétrica da África. “O Nilo é um presente que Deus deu para nós etíopes usarmos”, enfatiza o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed.

Mas, para o Cairo, é uma fonte de tensão que questiona um acordo celebrado em 1959 com Cartum, sem a Etiópia, que concede 66% do fluxo anual do Nilo ao Egito e 22% ao Sudão.

Para proteger essa conquista, em 2013, assessores do então presidente egípcio, Mohamed Morsi, propuseram na televisão a destruição da barragem etíope.

Hoje, o Egito de Abdel Fatah Al-Sissi continua a temer uma redução drástica no fluxo do Nilo em caso de enchimento muito rápido do Gerd.

Mas o assunto provoca debates na própria comunidade científica. Alguns pesquisadores são acusados de exagerar as perdas de água do Egito para justificar uma intervenção forçada na Etiópia, enquanto outros são acusados de minimizá-los e “trair” seu país

Em suas plantações, os agricultores egípcios já veem os efeitos da grande barragem de Assuã no lodo que, como as hidrelétricas construídas na Etiópia, Uganda ou Sudão, retém esse valioso fertilizante natural.

Lodo

Nos campos verdejantes de Al-Jazira, onde cultiva pepinos, berinjelas e batatas graças aos canais que nascem no Nilo, Omar Abdelhay constata que o trabalho se torna cada vez mais difícil com o passar do tempo.

Há oito anos, quando este pai de família sudanês – cuja pequena casa de barro tem vista direta para o rio – começou a cultivar as terras da família, “havia bom lodo e o Nilo alimentava adequadamente nossas culturas”. Mas, aos poucos, com as barragens que não param de crescer rio acima, “a água clareou e não tem mais lodo”, diz o agricultor de 35 anos.

Imerso na estagnação política e econômica, abalado por décadas de golpes ou manifestações hostis ao poder militar, o Sudão luta para administrar seus recursos hídricos. Todos os anos chove muito, mas a chuva não é necessariamente benéfica para as culturas devido à falta de um sistema agrícola e de armazenamento e reciclagem da água da chuva.

Hoje, a fome ameaça um terço da população. O país, porém, tem sido um ator importante nos mercados mundiais de algodão, amendoim e goma arábica. Graças aos pequenos canais de irrigação escavados na época colonial, bastava um pequeno fluxo para que a água entrasse e alimentasse suas terras férteis.

O sistema, que deveria ser desenvolvido com o grande plano de irrigação do Al-Jazira, nunca foi concretizado. Os campos cultivados sob a direção do Estado comandado pelo ditador Omar Al-Bashir -derrubado em 2019 – estão abandonados. Em vez disso, as famílias cultivam pepinos ou pimentas em seus pequenos lotes

Assim como o Sudão, os países ribeirinhos do Nilo – Burundi, República Democrática do Congo, Egito, Etiópia, Eritreia, Quênia, Ruanda, Sudão do Sul, Tanzânia e Uganda – estão na parte inferior do ranking ND-GAIN de vulnerabilidade às mudanças climáticas.

Para Callist Tindimugaya, do ministério da Água e Meio Ambiente de Uganda, “o impacto do aquecimento global será enorme”.

“Se tivermos chuvas escassas, mas fortes, sofreremos inundações. Mas se enfrentarmos longos períodos sem chuvas, teremos menos recursos hídricos. E sem água não se sobrevive”, resume.

Por Estadão Conteúdo.

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