O fim da prisão invisível: superando um relacionamento abusivo

A curitibana Cristhine de Souza do Nascimento, 37, viveu por 11 anos em um relacionamento abusivo. Nesse período, foi traída diversas vezes, teve depressão, engordou e fez até tratamento psiquiátrico. Somente após a morte do ex-marido, por um problema grave de saúde, ela enfim pode se libertar e buscar curar os traumas que teve durante todo esse tempo.


Essa é a realidade de muitas mulheres no mundo todo. Embora relacionamentos abusivos ocorram tanto em relações heterossexuais quanto homossexuais, geralmente as mulheres são as maiores vítimas de homens abusadores. 

Cris e João* se conheceram na adolescência por meio de um amigo em comum. Começaram a namorar quando tinham em torno de 18 anos, e o namoro se tornou casamento. Mas a relação começou a ter diversos problemas. Enquanto para os amigos e a família João demonstrava ser uma pessoa boa, em casa as coisas eram diferentes, como conta Cris: “Eu via que ele tinha uns rompantes. Ele ficava nervoso muito rápido, e volta e meia quebrava alguma coisa. Ele falava ‘eu vou quebrar isso para não dar na sua cara’, ‘eu faço isso para não bater em você’”.

Foto: Adobe Stock

Desde o começo do casamento, Cris tinha a sensação de que era traída. João costumava falar bastante de mulheres com quem ele trabalhava, e tinha longas saídas nos fins de semana. Chegava a ficar seis horas longe de casa, afirmando que estava no lava-car. Se a esposa pedisse para acompanhá-lo, ele não deixava. Como Cris descobriria mais tarde, durante esse período ele estava em motéis.

A convivência com o marido logo começou a afetar Cris de diversas maneiras. Ela foi diagnosticada com depressão e chegou a tomar 14 comprimidos por dia. Além disso, sofria de compulsão alimentar e ganhou peso. “Eu tomava remédio para dormir, eu tomava remédio para acordar, remédio para manter meu humor. Eu nunca fui uma pessoa magra, mas não era gorda como eu estava”, relembra Cris. 

*nome fictício.

Os abusos psicológicos

Em boa parte do tempo, João agia como um homem apaixonado. Dizia que Cris era linda, que preferia ela gorda, que gostava dela como ela era. Chegou até a insistir para que a esposa se matriculasse em um curso de modelos plus size.

Mas, quando eles não estavam bem, ele também dizia que se Cris o deixasse, ela nunca encontraria um homem como ele. “Quem que vai querer você?”, perguntava. “Ao mesmo tempo que ele falava que eu era linda, maravilhosa, eu era um lixo. Isso mexeu muito no meu psicológico”, conta Cris.

João não deixava Cris dirigir porque afirmava que ela era incapaz. Se ela falasse algo que o desagradava, ele quebrava as coisas de casa e batia na cachorra. Cris não conseguia falar com o marido por mensagens, porque ele deixava ela bloqueada no Whatsapp. 

Por várias vezes, Cris percebeu indícios de traição. Ela pedia para João admitir, afirmando que terminariam sem problemas. Mas ele sempre negava, acusava ela de estar louca e tinha episódios de violência.

João nunca chegou a agredir Cris, mas só porque, quando ele dava a impressão que ia bater nela, Cris o confrontava. Ela relembrou o que disse em uma dessas vezes: “Bate. Mas bate para me matar, porque se você me deixar viva você vai se ver com a minha mãe e com a minha família”. 

Foto: Adobe Stock

Cris ficou muito mal e, durante um período dentro dos 11 anos de relacionamento, ela se afastou do trabalho pelo INSS. Com pouco dinheiro, o casal passou por uma situação difícil. A comida em casa diminuiu, mas Cris não se sentia segura de contar para a família o que estava passando. 

Um dia, ela disse para João que não poderia mais pagar a TV por assinatura. Cris diz que ele não reagiu bem. “Ele cortou os cabos para que eu não pudesse nem assistir a TV aberta. Eu ficava dentro de casa trancada, sem comida e sem a TV”.

A pressão dentro de casa era tão grande que Cris chegou a frequentar durante meio período um hospital psiquiátrico. “Ele me fez chegar na minha pior fase, pior versão, tanto psicológica quanto física”, afirma Cris.

João era diabético e se alimentava mal. Cris fazia comidas sem açúcar para ele se cuidar, mas o ex-marido comia doces e lanches escondido. Nas consultas médicas, foi constatado que ele estava com falência nos rins e precisaria fazer um transplante.

Quando conseguiu a cirurgia, eram Cris, a mãe e o irmão dela que cuidavam de João. Cris chegava a ficar seis horas na fila para pegar remédios imunossupressores para o marido. Em casa, fazia tudo o que ele queria, com carinho.

Passado o período de transplante, o casal ingressou na faculdade. Ela em Jornalismo, ele, em Design. E João continuava com comportamentos agressivos e crises de ciúme. Ela se destacava na faculdade, e ele não gostava. Se incomodava. Discutia com ela antes da aula, saía batendo a porta de casa e falava “agora você vai de ônibus para aprender”. Nesse meio tempo, ele se encontrava com as amantes.

Cris, então, ia e voltava sozinha, mas tinha muito medo “Meu terror era tão grande em ir para casa, que eu ia para o Terminal Cabral e ficava rodando os terminais de ônibus em ônibus, até a última linha, porque eu não queria voltar”, conta.

Nesse período, Cris não teve muito apoio, nem mesmo da psicóloga e do psiquiatra que a atendiam. Sobre as traições, diziam que ela estava “vendo chifre em cabeça de cavalo”. Além disso, eles a instruíam a não contar as coisas para a mãe, como lembra Cris: “eles falavam que problema de casa se resolve em casa. É duro viver isso sozinha”.

O basta

Mas na faculdade, Cris conheceu uma professora que a fez abrir os olhos para as traições e para os abusos que ela sofria. Foi o primeiro grande apoio que ela teve.

Cristhine é formada em Jornalismo pela Unibrasil. Foto: arquivo pessoal.

Então um dia, em casa, Cris acordou e ouviu João mandando áudios românticos, em outro cômodo. Ela o confrontou e ele ficou nervoso, quebrou coisas e justificou que os áudios eram para ela. Desconfiada, em uma outra manhã ela olhou o celular dele enquanto ele tomava banho. Ali, ela teve a confirmação de todas as traições.

Cris disse que não estava bem, e pediu para João levar ela na casa da mãe dele. “Acho que foi um instinto. Eu pensei que se eu falasse alguma coisa, esse cara ia me matar dentro do apartamento”.

Segura na casa da mãe, ela abriu o jogo. Eles conversaram dentro do carro pela última vez. João ainda disse: “Eu te conheço. De noite você vai estar em casa com a janta pronta”. Mas Cris o mandou embora.

A morte do marido

Após a separação, por seis vezes o casal marcou para assinar o divórcio, mas João nunca apareceu. Quando completou um ano que eles não estavam mais juntos, o hospital ligou para Cris avisando que João precisava ser internado imediatamente, pois estava perdendo os rins. Cris ligou para o ex e descobriu que ele não estava tomando os imunossupressores, já que era ela quem buscava os remédios.

João foi internado e ficou em estado grave por algumas semanas. Um dia, a mãe dele ligou para Cris pedindo que ela assinasse o divórcio. Cris negou, já que João estava em estado vegetativo e não teria condições. Depois, ela descobriu que o motivo do pedido era porque ele teria um seguro a receber.

Alguns dias depois, João morreu. Cris ainda teve que lidar com ofensas da família e foi obrigada a organizar o velório. “Era quase cômico: era amante chorando para um lado, amante chorando do outro”.

Superação

João morreu em 2017. Cris se tornou, então, viúva. Mesmo não gostando mais do ex-marido, a perda ainda foi um choque. Nos anos que se seguiram, Cris continuou tendo episódios de compulsão alimentar. Chegou a pesar 130 kg: “Eu ia no Mc Donald’s e comprava três lanches. Comia um quilo de bolo sozinha”, conta.

Foi com o apoio da mãe que ela conseguiu iniciar o processo de superação e recuperação da autoestima. Terminou a faculdade e fez autoescola. Comprou um carro com o dinheiro que recebeu. Ainda hoje, porém, tem insegurança para dirigir.

Foto: arquivo pessoal

Cris começou a frequentar a academia, e teve dificuldades no início. Mas no ano passado, começou a ter mais disciplina. Ela conta que teve muito apoio do seu personal trainer, o fisiculturista Igor Jessé de Paula. Cris emagreceu 58 quilos e, mesmo com recaídas da depressão, ela afirma que está com a autoestima restaurada e não aceita mais passar por relações abusivas. “Hoje eu não aceito mais qualquer coisa. Se eu não elevar o meu padrão, vou continuar aceitando menos e achando que o menos é bom para mim”, assegura.

Para Cris, ser mulher é estar em constante luta, e é isso o que o Dia Internacional da Mulher representa para ela. Ela deixa um recado para outras mulheres que possam estar passando pelo que ela viveu: “escute o seu instinto. Se a família não te escuta, procure outra pessoa. Olha quantos anos eu fiquei presa nessa teia. Me perdi para me encontrar. Não é bobeira da gente, não somos loucas”.

Cris emagreceu 58 kg. Foto: arquivo pessoal.

Entendendo o relacionamento abusivo

A psicóloga clínica Lyeticia Knob atende diversos casos de vítimas de relacionamentos abusivos. Ela explica que esse tipo de abuso acontece quando um dos parceiros (em relações heteroafetivas ou homoafetivas) se acha superior ao outro. O parceiro sente que tem um objeto para suprir suas necessidades, desconsiderando todas as vontades do outro. “Acontece que, durante esse relacionamento, ela acaba criando uma relação de dependência. Por isso é muito difícil para as mulheres saírem deste tipo de relacionamento. Vai de manipulações até a vítima ficar dependente do outro” explica ela.

Psicóloga Lyeticia Knob. Foto: Facebook

Os sinais do início da violência doméstica são bem sutis, conforme explica a profissional. Deve ser analisado como o parceiro se comporta durante uma briga ou um confronto, como no caso de Cristhine, que tentava confrontar o marido sobre as traições e acabava numa discussão em que ela era saía como ‘a errada da história’.

Com a manipulação, ela foi afastada da sociedade e não pode ouvir outras vozes a não ser de seu parceiro. Os xingamentos se intensificaram e a jornalista entrou no ciclo da violência doméstica, onde ocorre a briga, a acusação em que a vítima é a culpada, as desculpas que o parceiro pede e a calmaria da relação até uma nova briga ocorrer.

“O ponto principal é entender a mulher quando ela se encontra e percebe que tem algo de diferente. Tem que pensar: como estou me sentindo com isso? Eu estou com medo? Por que eu estou com medo? O medo não é uma coisa normal de se sentir em relações. Você sente medo quando vê um perigo”, comenta a psicóloga. Ela ainda explica que as mulheres se anulam quando evitam comentar sobre um assunto que pode gerar discussão por terem medo ou receio.

Após a constatação e aceitação de estar vivendo um relacionamento abusivo, a mulher precisa se preocupar em sair dele. “Dificilmente a pessoa que está num relacionamento abusivo vai conseguir sair sozinha. Numa areia movediça, quanto mais você se debate, mais você afunda. Não consegue sair com sua força, você precisa de alguém que te ajude. Existem casos em que as  mulheres conseguem sair sozinhas, mas precisam de pessoas certas que possam te acolher e alertar sobre as situações erradas”, complementa.

Cristine não encontrou esse apoio quando buscou tratamento psicológico e psiquiátrico. Lyeticia explica que, durante o curso de Psicologia, deveria haver processo de desconstrução para que o profissional possa ouvir o outro sem julgamentos. “Tem curso de escuta de vítima de violência. Não falta conhecimento, mas falta as pessoas buscarem esse conhecimento”, esclarece.

Por este motivo é preciso divulgar histórias de mulheres que sofreram a violência doméstica, para gerar uma reflexão para outras mulheres que estão na mesma situação. “Quando você tem pessoas que se expõem e contam o seu relato, fica muito mais fácil de gerar essa identificação de pensar ‘nossa essa mulher passou por isso, meu Deus, mas então pode ser que eu esteja passando por isso’, e isso pode gerar uma reflexão nela. E isso a gente dá graças a outras mulheres que resolvem expor a sua dor para ajudar outras.” completa Lyeticia.

Por Luana Lopes e Vanessa Nogueira

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