A casa e os vinhos

Nos limites da Rua Bruno Filgueira, escondida sob um muro alto cheio de flores enfileiradas ao redor de um pequeno portão, uma casa de dois andares foi o lar de um casal apaixonado por vinhos, e vinhos dos mais diversos tipos: desde os escuros como as castanhas aos vermelhos como cascas de maçã, e até mesmo os rosas e brancos, que sempre me lembram nuvens e flamingos.

casa-vinhos
Foto: Freepik

Não vem ao caso explicar como nossos destinos, o meu e o do casal, se encontraram no turbilhão de encontros e desencontros que só o nosso mundo pode propiciar. Vale mais o leitor saber que, de um simples acaso germinou uma longa amizade recheada de aprendizados e admirações. E de vinhos, principalmente de vinhos.

Nas quartas-feiras, quintas e inclusive sábados e domingos, ao final da tarde eu andava alguns quarteirões até esta rua calma e tranquila, protegida por troncos e galhos cheio de passarinhos imóveis em cantos ou sussurros, e me dirigia ao lar de meus amigos.

Atravessado o portão, os muros davam lugar a todo o esplendor da casa e ao cheiro intenso de jasmim, que parecia emanar de um algum jardim escondido por ali, e do qual nunca vi provas de existência exceto este aroma, delicioso e vivo, que quase sempre era acompanhado pelo doce sorriso de minha amiga, que logo dizia, num tom de surpresa, o quanto era bem-vindo e como o dia de hoje seria especial.

Eu a acompanhava até os fundos da casa, onde uma pequena mesa instalada abaixo de um guarda-sol era preparada por meu amigo, com taças dos mais diversos tamanhos postos uma ao lado da outra, junto de decanters aguardando ansiosamente a serem preenchidos pelas garrafas do dia.

Algumas vezes havia outras pessoas que nos acompanhavam nas bebedeiras, mas em grande medida eram apenas nós, eu e o casal, conversando sobre os rótulos que iríamos tomar. Lembro de ter aprendido sobre a razão de o Barolo ser conhecido como o rei dos vinhos, a robustez e estrutura de que vinhos preparados na região de Borgonha, feitos com a uva Pinot Noir, uma das mais suaves e delicadas, podiam adquirir sob a correta temperatura de barril, e de como os franceses se arrependeram de terem perdido a uva Carménère aos chilenos.

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E logo que um deles começava a falar, o outro, como um professor a ouvir seu aluno dar longas explicações sobre aulas vistas e revistas, permanecia em silêncio, ouvindo atentamente e com admiração, se permitindo apenas uma ou outra emenda ou complemento, mas sem jamais tirar dos olhos o seu companheiro, numa devoção e moleza há muito tempo desaprendida.

Com eles aprendi que alguns casais emanam uma harmonia tão singular que é como se ambos compartilhassem lentes e vissem o mundo apenas através delas, aceitando de bom grado, desde que vindo do outro, os erros e desacertos mais repugnantes que se possam existir.

Tal harmonia rapidamente se converte em beleza, e eu não me cansava de reparar nas antecipações de meus amigos, no modo em que cada um se antevia à escolha das próximas palavras e creio até mesmo dos pensamentos, como se este conhecimento um do outro fosse a forma essencial do amor que deles era feito.

Daqueles anos guardo acima de tudo a sincronia de meus amigos, a incapacidade de imaginar-lhes com outro atributo que não o de “casal”, casal fundido e inseparável. E cada dia, naquela casa de altos muros, era especial. Profundamente especial.

Por isso é que não entendia o contínuo adiamento da abertura de um Châteauneuf du Pape, da safra de 2012, vinho já bem envelhecido que meus amigos o requintavam com mil e um elogios, e que diziam demandar um dia realmente especial para tomarmos.

Sempre que desembocávamos a falar neste vinho, eu me lembrava do trecho de um conto de Joseph Conrad: “Uma mulher como você e um homem como eu não se esbarram muitas vezes na face da terra”. E costumava imaginar que minha amiga, na intimidade da cama e dos lençóis, sussurrava essas palavras no ouvido de seu amado.

Mas isso foi antes do câncer. Câncer de intestino. Câncer fulminante. Imparável. Pouquíssimas chances de recuperação. No dia em que minha amiga me avisou do câncer de seu companheiro, só me lembro do verbo na primeira pessoal do plural: “Nós estamos com câncer!”

Já sozinha, enquanto a visitava pela última vez e ela e me contava sobre sua futura mudança à cidade de São Paulo, olhei para o vinho, o Châteauneuf du Pape, safra de 2012, guardado para uma ocasião especial.

E talvez essa seja toda a diferença: talvez toda a verdade, toda felicidade e todo o extraordinário estejam contidos apenas naquele inapreciável momento em que ultrapassamos o tempo, e vivemos esquecidos no presente…

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