Entre o sono e a vigília

Desde que consigo lembrar de mim mesmo, fui sujeito a brandas alucinações. Algumas eram áureas e serenas, outras mais nebulosas e repugnantes, que nada me valeram. Mas todas detinham essa mesma nota de torpor e sonolência, que se assemelha muito com as experiências de pré-adormecimento.

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Foto: Freepik

Pouco antes de acordar, por exemplo, muitas vezes me dou conta de uma espécie de paisagem que se irrompe sob os meus olhos, sem que nenhum dos elementos evocados possuam alguma relação com o meu quarto. É uma flor em broto, uma mariposa se aproximando dela, um riacho murmurando a passagem da água, o bater de asas de passarinhos e borboletas – imagens neutras, que parecem não querer transmitir nada a não ser sua lenta e trivial reprodução em meus pensamentos. 

Nunca ousei interromper esses fenômenos: corro o risco de que a planura da visão se converta em coisas grotescas e extravagantes, e que das minhas pálpebras surjam redemoinhos de baratas e abelhas com longos e afiados ferrões. 

Na maioria das vezes, porém, meus fotismos assumem um aspecto tranquilizador e muito brando, como se as imagens fictícias de minha mente estivessem rompendo levemente a barreira da realidade, oferecendo a meus olhos um esvaecimento da paisagem a minha volta e seu retorno, logo em seguida, com um brilho muito mais forte e bonito.  

Foi o caso de quando, ainda criança, me vi preso por mais de três horas num pé de ameixa. 

Tudo aconteceu na casa de minha avó. As numerosas brincadeiras de mau gosto que pratiquei na infância se deram pela mansidão de minha mãe e pela compressão de minha avó. Desta última, inclusive, até hoje não consigo separa-la da imagem de sua velha e grande casa. Casa de avó. Casa ampla e espaçosa, com jardim. 

Nessas casas há quartos que foram sendo esquecidos e remanejados, já que filhos se mudaram; corredores que guardam um frescor nostálgico e melancólico; e netos que herdam o compromisso de reviver os velhos cômodos e os belos jardins com monstros, princesas e travessuras. 

Mas a história que quero contar se deu assim: enquanto brincava de manhãzinha no jardim de minha avó, resolvi subir no pé de ameixa que permanecia na divisa de nossa casa para roubar algumas mexericas de nossa vizinha, uma velha senhora que meus tios diziam ser uma moça odiosa, e que não gostava de ser vista e muito menos falada. Apenas uma vez a avistei, e lembro que nas sombras de seus olhos flutuavam memórias que não lhe pareciam dar grande alegria. 

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Bom, eu nem gostava tanto de mexerica. Acredito que o que me levou a roubá-las era muito mais o desejo de me esquadrinhar no perigo, no palpitar o coração entre o medo e orgulho. Mas como nas manhãs a vizinha dificilmente saía de casa, achei que esta era a melhor hora para escalar o pé de ameixa e roubar algumas das mexericas.

Assim que me vi no topo, escutei o rumor de passos marchando na grama, passos fortes e barulhentos, e o balbucio de vozes vindos num radinho vermelho, que a acompanhava onde quer que nossa vizinha se metesse. Ela parou no centro do jardim, sentou-se numa cadeira de plástico e ali permaneceu, em companhia de seu cão mais rabugento e enfurecido do que ela. 

Me esforçava a todo instante para não mexer nenhum músculo, principalmente pelo cachorro que, mesmo cego de um olho, a todo momento se aproximava do muro e contorcia seu focinho em direção ao pé de mexerica e, sem dúvida alguma, intuía que algo estava errado. 

A cada investida do cachorro, meus braços formigavam e me arrepiava até a espinha. Rapidamente fui tomado por um medo de clausuro eterno em que até a possibilidade de gritar o nome de minha avó seria pior do que deixar-me cair no jardim da vizinha. Não havia nada que pudesse fazer. Caberia a mim aguardar a velha voltar para dentro de casa. Mas até isso acontecer, estava sozinho com mexericas, ameixas plantas e galhos. 

O medo de um risco eminente – como o meu caso de ser descoberto a qualquer instante pela vizinha – tende a ser atenuado na medida em que o ato não se concretiza. Se ficarmos horas em frente a um urso selvagem sem que ele nos avance, uma hora ou outra iremos esquece-lo – e mais rapidamente do que imaginamos. 

Assim aos poucos eu também fui-me esquecendo. Meu coração se resignou, os músculos relaxaram e logo fui tomado por uma vertigem de cor laranja das mexericas e verdes das plantas. Sentia-me como no esconderijo da natureza. Perdi-me completamente ali. Contemplava as curvaturas dos galhos, as abelhas que me sobrevoavam e a exuberância de cores em minha volta. E o tempo em si se perdia também, como se tudo estivesse ao alcance das mãos, e até perto de meus olhos…

Permaneci deste modo até o momento em que uma voz no radinho anunciou que era meio-dia. A velha senhora se levantou calmamente, e disse, com uma voz tão doce como as cores das mexericas, que era hora de almoçar, e que eu agora já poderia voltar para casa.  

Ela sabia desde o início onde estava escondido e não esboçou, por três horas, nenhuma reação. Hoje, gosto de pensar que fez isso porque também se perdeu no mundo das mexericas, ameixas, dos galhos e das plantas.  

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