Milan Kundera: o mestre do Kitsch

O romancista Milan Kundera morreu no dia 11 de julho de 2023, aos 94 anos, na cidade de Paris, França. Lutando há muito tempo contra uma prolongada doença, dizia-se que ele, nos estágios mais avançados de sua enfermidade, só conseguia repetir aleatoriamente uma única palavra: Brno, sua cidade natal, na República Tcheca.

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O autor do livro ‘A insustentável leveza do ser’, reconhecido por levar tão extensivamente o engano que permeia os corações humanos, de levar à arte da desilusão e da descoberta em conjunto como uma inovação formal da arte romanesca sem precedentes, é considerado por muitos como o principal romancista do século XX.

Curiosamente, por um desses acasos que rodeiam nossas vidas e nos fazem pensar se há algum determinismo em seus acontecimentos, no dia 11 de julho, ainda antes de tomar conhecimento de seu falecimento, eu pensava em Kundera.

Naquela tarde, enquanto voltava para casa, dirigindo em justaposição ao sol, começava a entrar em um estado de pequeno transe, uma vertigem que ia colorindo cada vez mais os objetos e as pessoas que passavam à minha volta, desacelerando o tempo e encurtando o espaço a partir de uma sensação de discreta alegria, de repouso.

Não fui capaz de segurar um sorriso em meus lábios ao observar as pessoas que se estivaram no gramado da praça em que passava, nas crianças indo e vindo, nos cachorros lambendo seus donos, nas mulheres cochichando entre si e nos velhos sentados tranquilamente nos bancos.

Ali, era como se eu estivesse novamente reconciliado com o passado e com os outros. Um sentimento crescente de felicidade tomou conta de mim, e ao ver aquelas pessoas que pareciam tão bondosas, tão diferentes das maldades do mundo, tão alheias à morte e à doença, tão suspensas num estado de mansidão, tive vontade de perdoar o mundo todo, de esquecer as vinganças e o ressentimentos, e de dizer que o mundo era efetivamente um lugar bom.

Essa vertigem, infelizmente, durou pouco. Comecei a pensar que, na realidade, não sei nada sobre essas pessoas. Não sei que dores e demônios se escondem em seus corações, e o que seriam capazes de fazer ao saírem daquele idílio temporário em que as via.

No fim das contas, o que eu fazia era condensar toda a minha felicidade numa imagem criada pela minha mente. Eu era, em suma, vítima do kitsch, um dos conceitos mais utilizados nas obras de Kundera.

Kundera entende o Kitsch como um acordo categórico com o ser, cuja principal função é negar tudo aquilo que é desagradável e sombrio para a condição humana. Uma estética em que a falsidade está a serviço dos bons sentimentos.

Todos nós já fomos vítimas do Kitsch em algum momento, seja naquilo que é desagradável e ao mesmo tempo ignorado, seja naquelas verdades que não podem ser pronunciadas e que precisamos omitir discretamente para não causarmos um desequilibro em nossas próprias vidas.

A verdade de que o funcionário não está interessado nos valores e missões da empresa, mas apenas em receber seu salário, a verdade de que nossa bondade muitas vezes é mais orgulhosa do que desinteressada, e assim por diante.

Dessa forma, o kitsch submetido a política, ao marketing, ao corporativismo e ao próprio conceito que temos de felicidade depende de certas situações-padrão: desfiles de rua com músicas e bandeiras do partido, promessas de plena satisfação por um preço baixo, engajamento de grupos e passarinhos cantando numa praia paradisíaca – tudo isso com a omissão daquilo de desagradável que subsiste nessas realidades.

Mas por mais duro que seja, Kundera entende que precisamos negar a maldade e o repulsivo de nossos atos e de nossos ideais para podemos alcançar alguma paz, alguma espécie de repouso em um mundo desagradável que jamais poderá excluir a violência.

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Assim que Milan Kundera morreu, foi publicado um artigo dizendo que ele era um resistente contra o comunismo. Tenho certeza que ele não gostaria de ser lembrado como uma vítima do comunismo, mas sim como um militante contra o Kitsch: a falsidade à serviço dos bons sentimentos.

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